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CONVITE À FILOSOFIA-POLÍTICA

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 8
O mundo da prática

Capítulo 7
A vida política

Paradoxos da política

Não é raro ouvirmos dizer que “lugar de estudante é na sala de aula e não na rua, fazendo passeata” ou “estudante estuda, não faz política”. Mas também ouvimos o contrário, quando alguém diz que “os estudantes estão alienados, não se interessam por política”. No primeiro caso, considera-se a política uma atividade própria de certas pessoas encarregadas de fazê-la – os políticos profissionais -, enquanto no segundo caso, considera-se a política um interesse e mesmo uma obrigação de todos. Assim, um primeiro paradoxo da política faz aqui sua aparição: é ela uma atividade específica de alguns profissionais da sociedade ou concerne a todos nós, porque vivemos em sociedade?

Como se observa, usamos a palavra política ora para significar uma atividade específica – o governo -, realizada por um certo tipo de profissional – o político -, ora para significar uma ação coletiva – o movimento estudantil nas ruas – de reivindicação de alguma coisa, feita por membros da sociedade e dirigida aos governos ou ao Estado. Afinal, a política é uma profissão entre outras ou é uma ação que todos os indivíduos realizam quando se relacionam com o poder? A política se refere às atividades de governo ou a toda ação social que tenha como alvo ou como interlocutor o governo ou o Estado?

No entanto, podemos usar a palavra política ainda noutro sentido.

De fato, freqüentemente, encontramos expressões como “política universitária”, “política da escola”, “política do hospital”, “política da empresa”, “política sindical”. Nesse conjunto de expressões, já não encontramos a referência ao governo nem a profissionais da política. “Política universitária” e “política da escola” referem-se à maneira como uma instituição de ensino (pública ou privada) define sua direção e o modo de participação ou não de professores e estudantes em sua gestão, ao modo como os recursos serão empregados, ao currículo, às formas de avaliação dos alunos e professores, ao tipo de pessoa que será recebida como estudante ou como docente, à carreira dos docentes, aos salários, e, se a instituição for privada, ao custo das mensalidades e matrículas, etc.

Em sentido próximo a esse fala-se de “política do hospital”. Já “política da empresa” refere-se ao modo de organização e divisão de poderes relativos aos investimentos e aos lucros de uma empresa, à distribuição dos serviços, à divisão do trabalho, às decisões sobre a produção e a distribuição dos produtos, às relações com as outras empresas, etc. “Política do sindicato” refere-se à maneira de preencher os cargos de direção sindical, às formas de representação e participação dos sindicalizados na direção do sindicato, aos conteúdos e às formas das reivindicações e lutas dos sindicalizados em face de outros poderes, etc.

Podemos, então, indagar: Afinal, o que é a política? É a atividade de governo? É a administração do que é público? É profissão de alguns especialistas? É ação coletiva referida aos governos? Ou é tudo que se refira à organização e à gestão de uma instituição pública ou privada? No primeiro caso (governo e administração), usamos “política” para nos referirmos a uma atividade que exige formas organizadas de gestão institucional e, no segundo caso (gestão e organização de instituições), usamos “política” para nos referirmos ao fato de que organizar e gerir uma instituição envolve questões de poder. Em resumo: Política diz respeito a tudo quanto envolva relações de poder ou a tudo quanto envolva organização e administração de grupos?

Como veremos posteriormente, o crescimento das atribuições conferidas aos governos, sob a forma do Estado, levou a uma ampliação do campo das atividades políticas, que passaram a abranger questões administrativas e organizacionais, decisões econômicas e serviços sociais. Essa ampliação acabou levando a um uso generalizado da palavra política para referir-se a toda modalidade de direção de grupos sociais que envolva poder, administração e organização.

Podemos, assim, distinguir entre o uso generalizado e vago da palavra política e um outro, mais específico e preciso, que fazemos quando damos a ela três significados principais inter-relacionados:

1. o significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, sob a forma do Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de instituições permanentes que permitem a ação dos governos.

Ao Estado confere-se autoridade para gerir o erário ou fundo público por meio de impostos, taxas e tributos, para promulgar e aplicar as leis que definem os costumes públicos lícitos, os crimes, bem como os direitos e as obrigações dos membros da sociedade. Também se reconhece como autoridade do governo ou do Estado o poder para usar a força (polícia e exército) contra aqueles que forem considerados inimigos da sociedade (criminosos comuns e criminosos políticos). Confere-se igualmente ao governo ou ao Estado o poder para decretar a guerra e a paz. Exige-se dos membros da sociedade obediência ao governo ou ao Estado, mas reconhece-se o direito de resistência e de desobediência quando a sociedade julga o governo ou mesmo o Estado injusto, ilegal ou ilegítimo.

A política, neste primeiro sentido, refere-se, portanto, à ação dos governantes que detêm a autoridade para dirigir a coletividade organizada em Estado, bem como às ações da coletividade em apoio ou contrárias à autoridade governamental e mesmo à forma do Estado;

2. o significado de atividade realizada por especialistas – os administradores – e profissionais – os políticos -, pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica – os partidos -, que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado. Neste segundo sentido, a política aparece como algo distante da sociedade, uma vez que é atividade de especialistas e profissionais que se ocupam exclusivamente com o Estado e o poder. A política é feita “por eles” e não “por nós”, ainda que “eles” se apresentem como representantes “nossos”;

3. o significado, derivado do segundo sentido, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e freqüentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos. Este terceiro significado é o mais corrente para o senso comum social e resulta numa visão pejorativa da política. Esta aparece como um poder distante de nós (passa-se no governo ou no Estado), exercido por pessoas diferentes de nós (os administradores e profissionais da política), através de práticas secretas que beneficiam quem as exerce e prejudicam o restante da sociedade. Fala-se na política como “mal necessário”, que precisamos tolerar e do qual precisamos desconfiar. A desconfiança pode referir-se tanto aos atuais ocupantes dos postos e cargos políticos, quanto a grupos e organizações que lhes fazem oposição e pretendem derrubá-los, seja para ocupar os mesmos postos e cargos, seja para criar um outro Estado, através de uma revolução sócio-econômica e política.

Onde está o paradoxo? Na divergência entre o primeiro e o terceiro sentido da palavra política, pois o primeiro se refere a algo geral, que concerne à sociedade como um todo, definindo leis e costumes, garantindo direitos e obrigações, criando espaço para contestações através da reivindicação, da resistência e da desobediência, enquanto o terceiro sentido afasta a política de nosso alcance, fazendo-a surgir como algo perverso e maléfico para a sociedade. A divergência entre o primeiro e o terceiro é provocada pelo segundo significado, isto é, aquele que reduz a política à ação de especialistas e profissionais.

Essa situação paradoxal da política acaba por fazer-nos aceitar como óbvias e verdadeiras certas atitudes e afirmações que, se examinadas mais a fundo, seriam percebidas como absurdas.

Tomemos um exemplo recente da história da política do País. Em 1993, durante o julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), do pedido do ex-presidente da república, Fernando Collor de Mello, de não-suspensão de seus direitos políticos, ouvimos, em toda a parte, a afirmação de que o Poder Judiciário (do qual o Supremo Tribunal Federal é o órgão mais alto) só teria sua dignidade preservada se o julgamento do pedido não fosse um “julgamento político”.

Onde está o paradoxo? No fato de que a república brasileira é constituída por três poderes políticos – executivo, legislativo, judiciário -, e, portanto, o Supremo Tribunal Federal, sendo um poder político da República (um poder do Estado), não pode ficar fora da política. Que sentido, portanto, poderia ter a idéia de que o órgão mais alto do Poder Judiciário não deve julgar politicamente? Como desejar que um poder do Estado, portanto, um poder político, aja fora da política?

Mais paradoxal, ainda, foi o modo como os juízes, após o julgamento, avaliaram seu próprio trabalho, dizendo: “Foi um julgamento legal e não político”. Ora (e nisso reside o paradoxo), a lei não é feita pelo Poder Legislativo? Não é parte da Constituição da República? Não é parte essencial da política? Como, então, separar o legal e o político, se a lei é uma das formas fundamentais da ação política?

Na verdade, quando se insistia em que o julgamento “não fosse político” e se elogiava o julgamento por “ter sido apenas legal”, o que estava sendo pressuposto por todos (sociedade e juízes) era a identificação costumeira entre política e interesses particulares escusos, contrários aos da maioria, que por isso deve ser protegida pela lei contra a política. O paradoxo está no fato de que uma forma essencial da política – a lei – aparece como proteção contra a própria política.

Uma outra afirmação que aceitamos tranqüilamente é aquele que acusa e critica uma greve, declarando que se trata de “greve política”. É curioso que usemos, sem problema, a expressão “política sindical” e, ao mesmo tempo, a condenemos, criticando uma greve sob a alegação de ser “política”.

Em certos casos, é compreensível o paradoxo. Quando, por exemplo, se trata de trabalhadores de uma fábrica de automóveis que, em nome de melhores salários, entram em greve contra a direção da empresa, compreende-se que a greve seja considerada “simplesmente econômica”. Ao criticá-la como “greve política” está-se, como sempre, querendo dizer que os grevistas, sob a aparência de uma reivindicação salarial, estariam defendendo interesses particulares escusos e ilegítimos, ou buscando, dissimuladamente, vantagens e poderes para alguns sindicalistas. A palavra política é, assim, empregada para dar um sentido pejorativo à greve.

Há casos, porém, em que a expressão “greve política”, usada como crítica ou acusação, é surpreendente. Suponhamos, por exemplo, que os trabalhadores de um país façam uma greve geral contra o plano econômico do governo. Estão, portanto, recusando uma política econômica e, nesse caso, a greve é e só pode ser política. Por que, então, acusar uma greve por ela ser o que ela é? O motivo é simples: para o senso comum social, dizer de alguma coisa que ela é “política” é fazer uma acusação. A crítica só em aparência está dirigida contra a greve, pois, realmente, está voltada contra a política, imaginada como algo maléfico.

Essa visão generalizada da política como algo perverso, perigoso, distante de nós (passa-se no Estado), praticado por “eles” (os políticos profissionais) contra “nós”, sob o disfarce de agirem “por nós”, faz com que seja sentida como algo secreto e desconhecido, uma conduta calculista e oportunista, uma força corrupta e, através da polícia, uma força repressora usada contra a sociedade. Essa imagem da política como um poder do qual somos vítimas tolerantes, que consentem a violência, é paradoxal pelo menos por dois motivos principais.

Em primeiro lugar, porque a política foi inventada pelos humanos como o modo pelo qual pudessem expressar suas diferenças e conflitos sem transformá-los em guerra total, em uso da força e extermínio recíproco. Numa palavra, como o modo pelo qual os humanos regulam e ordenam seus interesses conflitantes, seus direitos e obrigações enquanto seres sociais. Como explicar, então, que a política seja percebida como distante, maléfica e violenta?

Em segundo lugar, porque a política foi inventada como o modo pelo qual a sociedade, internamente dividida, discute, delibera e decide em comum para aprovar ou rejeitar as ações que dizem respeito a todos os seus membros. Como explicar, então, que seja percebida como algo que não nos concerne, mas nos prejudica, não nos favorece, mas favorece aos interesses escusos e ilícitos de outros?

Que aconteceu a essa invenção humana para tornar-se, paradoxalmente, um fardo de que gostaríamos de nos livrar?

Cotidianamente, jornais, rádios, televisões mostram, no mundo inteiro, fatos políticos que reforçam a visão pejorativa da política: corrupção, fraudes, crimes impunes praticados por políticos, mentiras provocando guerras para satisfazer aos interesses econômicos dos fabricantes de armamentos, desvios de recursos públicos que deveriam ser usados contra a fome, as doenças, a pobreza, aumento das desigualdades econômicas e sociais, uso das leis com finalidades opostas aos objetivos que tiveram ao ser elaboradas, etc.

Ao lado desses fatos, não passa um dia sem que saibamos o modo desumano, autoritário, violento com que funcionários públicos, cujo salário é pago por nós (através de impostos), tratam a população que busca os serviços públicos. Também contribui para a visão negativa da política a maneira como as leis estão redigidas, tornando-se incompreensíveis para a sociedade e exigindo que sejam interpretadas por especialistas, sem que tenhamos garantia de que as interpretam corretamente, se o fazem em nosso favor ou em favor de privilégios escondidos.

O que é curioso, porém, aumentando nossa percepção da política como algo paradoxal, é o fato de que só podemos opor-nos a tais fatos e lutar contra eles através da própria política, pois mesmo quando se faz uma guerra civil ou se realiza uma revolução, os motivos e objetivos são a política, isto é, mudanças na forma e no conteúdo do poder. Mesmo as utopias de emancipação do gênero humano contra todas as modalidades de servidão, escravidão, autoritarismo, violência e injustiça concebem o término de poderes ilegítimos, mas não o término da própria política.

As pessoas que, desgostosas e decepcionadas, não querem ouvir falar em política, recusam-se a participar de atividades sociais que possam ter finalidade ou cunho políticos, afastam-se de tudo quanto lembre atividades políticas, mesmo tais pessoas, com seu isolamento e sua recusa, estão fazendo política, pois estão deixando que as coisas fiquem como estão e, portanto, que a política existente continue tal qual é. A apatia social é, pois, uma forma passiva de fazer política.

O vocabulário da política

O historiador helenista Moses Finley, estudando as sociedades grega e romana, concluiu que o que chamamos de política foi inventado pelos gregos e romanos.

Antes de examinarmos o que foi tal invenção, já podemos compreender a origem greco-romana do que chamamos de política pelo simples exame do vocabulário usado em política: democracia, aristocracia, oligarquia, tirania, despotismo, anarquia, monarquia são palavras gregas que designam regimes políticos; república, império, poder, cidade, ditadura, senado, povo, sociedade, pacto, consenso são palavras latinas que designam regimes políticos, agentes políticos, formas de ação política.

A palavra política é grega: ta politika, vinda de polis.

Polis é a Cidade, entendida como a comunidade organizada, formada pelos cidadãos (politikos), isto é, pelos homens nascidos no solo da Cidade, livres e iguais, portadores de dois direitos inquestionáveis, a isonomia (igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito de expor e discutir em público opiniões sobre ações que a Cidade deve ou não deve realizar).

Ta politika são os negócios públicos dirigidos pelos cidadãos: costumes, leis, erário público, organização da defesa e da guerra, administração dos serviços públicos (abertura de ruas, estradas e portos, construção de templos e fortificações, obras de irrigação, etc.) e das atividades econômicas da Cidade (moeda, impostos e tributos, tratados comerciais, etc.).

Civitas é a tradução latina de polis, portanto, a Cidade como ente público e coletivo. Res publica é a tradução latina para ta politika, significando, portanto, os negócios públicos dirigidos pelo populus romanus, isto é, os patrícios ou cidadãos livres e iguais, nascidos no solo de Roma.

Polis e civitas correspondem (imperfeitamente) ao que, no vocabulário político moderno, chamamos de Estado: o conjunto das instituições públicas (leis, erário público, serviços públicos) e sua administração pelos membros da Cidade.

Ta politika e res publica correspondem (imperfeitamente) ao que designamos modernamente por práticas políticas, referindo-se ao modo de participação no poder, aos conflitos e acordos na tomada de decisões e na definição das leis e de sua aplicação, no reconhecimento dos direitos e das obrigações dos membros da comunidade política e às decisões concernentes ao erário ou fundo público.

Dizer que os gregos e romanos inventaram a política não significa dizer que, antes deles, não existiam o poder e a autoridade, mas sim que inventaram o poder e a autoridade políticos propriamente ditos. Para compreendermos o que se pretende dizer com isso, convém examinarmos como era concebido e praticado o poder nas sociedades não greco-romanas.

O poder despótico

Nas realezas existentes antes dos gregos, nos territórios que viriam a formar a Grécia – realezas micênicas e cretenses -, bem como as que existiam nos territórios que viriam a formar Roma – realezas etruscas -, assim como nos grandes impérios orientais – Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China – vigorava o poder despótico ou patriarcal.

Em grego, despotes, e, em latim, pater-familias, o patriarca, é o chefe de família[i] cuja vontade absoluta é a lei: “Aquilo que apraz ao rei tem força de lei”. O poder era exercido por um chefe de família ou de famílias (clã, tribo, aldeia), cuja autoridade era pessoal e arbitrária, decidindo sobre a vida e a morte de todos os membros do grupo, sobre a posse e a distribuição das riquezas, a guerra e a paz, as alianças (em geral sob a forma de casamentos), o proibido e o permitido.

Embora, de fato, a origem desse poder estivesse na propriedade da terra e dos rebanhos, sendo chefe o detentor da riqueza, procurava-se garanti-lo contra revoltas e desobediências afirmando-se uma origem sobrenatural e divina para ele. Aparecendo como designado pelos deuses e desejado por eles, o detentor do poder também era detentor do privilégio de relacionar-se diretamente com o divino ou com o sagrado, concentrando em suas mãos a autoridade religiosa.

Por sua riqueza, autoridade religiosa e posse de armas, o detentor do poder era também chefe militar, concentrando em suas mãos a chefia dos exércitos e a decisão sobre a guerra e a paz. Era comandante.

O chefe era um senhor, enfeixando em suas mãos a propriedade do solo e tudo quanto nele houvesse (portanto, a riqueza do grupo), a autoridade religiosa e militar, sendo, por isso, rei, sacerdote e capitão.

Com o crescimento demográfico (através das alianças pelos casamentos entre famílias régias), a expansão territorial (através das guerras de conquista), a divisão social do trabalho (através da escravização dos vencidos de guerra e das funções domésticas das mulheres) e os acordos militares e navais entre grupos, a autoridade, embora concentrada nas mãos do rei, passa a ser delegada por ele a seus representantes (em geral, membros de sua família e das famílias aliadas).

Surge, assim, uma repartição das funções de direção ou de poder: a casta sacerdotal detém a autoridade religiosa e a dos guerreiros, a militar. Senhores das terras, dos escravos, das mulheres, das armas e dos deuses, os grupos detentores da autoridade formavam a classe dominante economicamente e dirigente da comunidade, sob o poder do rei, ao qual prestavam juramento de lealdade e pagavam tributo pelo usufruto das terras pertencentes a ele e por ele cedidas aos demais.

A propriedade da terra e de seus produtos existia sob duas formas principais:

1. como propriedade privada do rei e, portanto, como domínio pessoal do chefe ou patriarca. Esse patrimônio ou propriedade patrimonial era cedido, segundo a vontade arbitrária do rei, aos chefes de clãs e tribos, aos grupos sacerdotais e militares, mediante serviços e/ou tributos. Em geral, esse tipo de propriedade prevalecia naquelas regiões em que o cultivo da terra exigia trabalhos imensos de irrigação e de transporte de água, que um proprietário isolado não poderia realizar, não só por lhe faltarem recursos para isso como também porque teria que atravessar terras de outros proprietários, devendo pagar-lhes tributos ou fazer-lhes guerra. A propriedade, ficando na posse do rei, permitia que este usasse os recursos vindos dos tributos para as grandes obras de irrigação e transporte de águas, ao mesmo tempo em que possuía o poder para atravessar toda e qualquer terra para realizar as obras;

2. como propriedade coletiva das aldeias ou propriedade comunal do chefe da aldeia, que pagava tributos ao rei em troca de proteção, submetendo-se ao poder régio e, portanto, à autoridade religiosa e militar do senhor.

Seja num caso como noutro, o rei era forçado a exercer um controle cerrado sobre as chefias locais e sobre os que usufruíam as terras, pois as rebeliões eram freqüentes e a disputa pelo poder interminável. Tal controle era feito por representantes do rei, quando percorriam as terras registrando a produção e recolhendo tributos, punindo crimes cometidos contra as decisões e decretos régios, sufocando revoltas e impedindo o surgimento de federações e confederações de aldeias.

Com isso, o rei passou a ter uma imensa burocracia e imensos exércitos, custeados pelos chefes locais e suas aldeias. Os funcionários régios precisavam saber ler, escrever e contar. Nas sociedades de que falamos, tais conhecimentos eram privilégio de um grupo, os sacerdotes. Por esse motivo, a ênfase no caráter sagrado ou religioso do poder tendia a aumentar à medida que aumentava o poderio sacerdotal, sustentáculo indispensável do poder régio. Deuses e armas eram os pilares da autoridade.

Assim constituído, o poder possuía as seguintes características:

● despótico ou patriarcal: era exercido pelo chefe de família sobre um conjunto de famílias a ele ligadas por laços de dependência econômica e militar, por alianças matrimoniais, numa relação pessoal em que o chefe garantia proteção e os súditos ofereciam lealdade e obediência, jurando cumprir a vontade do primeiro;

● total: o detentor da autoridade possuía poder supremo inquestionável para decidir quanto ao permitido e ao proibido (a lei exprime a vontade pessoal do chefe), para estabelecer os vínculos com o sagrado, isto é, com os deuses e antepassados (o chefe detém o poder religioso), para decidir quanto à guerra e à paz (o chefe detém o poder militar). A tomada de decisão cabia exclusivamente ao rei. Este possuía conselheiros (sacerdotes e militares), que o informavam e lhe sugeriam condutas e ações, mas a decisão cabia apenas a ele. O conselho era secreto, os motivos de uma decisão eram secretos, o que se passava entre o rei e seus conselheiros era secreto. Somente a decisão tornava-se pública, sob a forma de um decreto real;

● incorporado ou corporificado: o detentor do poder figurava em seu próprio corpo as características do poder, apresentando-se como manifestação da própria comunidade. Sua cabeça encarnava a autoridade que dirige, seu peito encarnava a vontade que ordena, seus membros superiores encarnavam os delegados que o representavam (sacerdotes e militares), seus membros inferiores encarnavam os súditos que o obedeciam. Essa figuração do poder no corpo do próprio rei indicava a existência de uma organização social fortemente hierarquizada, na qual cada indivíduo possuía um lugar fixo e predeterminado, só tendo existência social graças a esse lugar. O corpo do rei permitia não só figurar a hierarquia, mas também a forte centralização da autoridade, concentrada na cabeça e no peito do dirigente;

● mágico: por receber a autoridade dos deuses, o detentor do poder possuía força sobrenatural ou mágica. Sua palavra era um comando misterioso que fazia existir aquilo que era dito (o rei dizia “faça-se” e as coisas aconteciam simplesmente porque ele as havia dito e desejado); seus gestos e desejos tinham força para matar e curar, sua maldição destruía tudo quanto fosse amaldiçoado por ele, dele dependiam a fertilidade da terra, a vitória ou a derrota na guerra, o início ou o fim de uma peste, fenômenos meteorológicos, cataclismos;

● transcendente: por ser de origem divina, o rei era divinizado e acreditava-se em sua imortalidade como condição da preservação da comunidade. Essa divinização o colocava acima e fora da comunidade. Tal separação levava a considerar que o dirigente ocupava um lugar transcendente, graças ao qual via tudo, sabia tudo e podia tudo, tendo o império total sobre a comunidade;

● hereditário: era transmitido ao primogênito do rei ou, na falta deste, a um membro da família real. A família reinante constituía uma linhagem e uma dinastia, que só findava ou por falta de herdeiros diretos ou por usurpação do poder por uma outra família, que dava início a uma nova linhagem ou dinastia.

A invenção da política

Quando se afirma que os gregos e romanos inventaram a política, o que se diz é que desfizeram aquelas características da autoridade e do poder. Embora, nos começos, gregos e romanos tivessem conhecido a organização econômico-social de tipo despótico ou patriarcal, um conjunto de medidas foram tomadas pelos primeiros dirigentes – os legisladores – de modo a impedir a concentração dos poderes e da autoridade nas mãos de um rei, senhor da terra, da justiça e das armas, representante da divindade.

A propriedade da terra não se tornou propriedade régia ou patrimônio privado do rei, nem se tornou propriedade comunal ou da aldeia, mas manteve-se como propriedade de famílias independentes, cuja peculiaridade estava em não formarem uma casta fechada sobre si mesma, porém aberta à incorporação de novas famílias e de indivíduos ou não-proprietários enriquecidos no comércio.

Apesar das diferenças históricas na formação da Grécia e de Roma, há três aspectos comuns a ambas e decisivos para a invenção da política. O primeiro, como assinalamos há pouco, é a forma da propriedade da terra; o segundo, o fenômeno da urbanização; e o terceiro, o modo de divisão territorial das cidades.

Como a propriedade da terra não pertencia à aldeia nem ao rei, mas às famílias independentes, e como as guerras ampliavam o contingente de escravos, formou-se na Grécia e em Roma uma camada pobre de camponeses que migraram para as aldeias, ali se estabeleceram como artesãos e comerciantes, prosperaram, fizeram, das aldeias, cidades, passaram a disputar o direito ao poder com as grandes famílias agrárias. Uma luta de classes perpassa a história grega e romana exigindo solução.

A urbanização significou uma complexa rede de relações econômicas e sociais que colocava em confronto não só proprietários agrários, de um lado, e artesãos e comerciantes, de outro, mas também a massa de assalariados da população urbana, os não-proprietários, genericamente chamados de “os pobres”.

A luta de classes incluía, assim, lutas entre os ricos e lutas entre ricos e pobres. Tais lutas eram decorrentes do fato de que todos os indivíduos participavam das guerras externas, tanto para a expansão territorial, quanto para a defesa de sua cidade, formando as milícias dos nativos da cidade. Essa participação militar fazia com que todos se julgassem no direito, de algum modo, de intervir nas decisões econômicas e legais das cidades. A luta das classes pedia uma solução. Essa solução foi a política.

Finalmente, os primeiros chefes políticos ou legisladores introduziram uma divisão territorial das cidades que visava a diminuir o poderio das famílias ricas agrárias, dos artesãos e comerciantes urbanos ricos e à satisfazer a reivindicação dos camponeses pobres e dos artesãos e assalariados urbanos pobres. Em Atenas, por exemplo, a polis foi subdividida em unidades sociopolíticas denominadas demos; em Roma, em tribus.

Quem nascesse num demos ou numa tribus, independentemente de sua situação econômica, tinha assegurado o direito de participar das decisões da cidade. No caso de Atenas, todos os naturais do demos tinham o direito de participar diretamente do poder, donde o regime ser uma democracia. Em Roma, os não-proprietários ou os pobres formavam a plebe, que tinha o direito de eleger um representante – o tribuno da plebe – para defender e garantir os interesses plebeus junto aos interesses e privilégios dos que participavam diretamente do poder, os patrícios, que constituíam o populus romanus. O regime político romano era, assim, uma oligarquia.

Diante do poder despótico, gregos e romanos inventaram o poder político porque:

● separaram a autoridade pessoal privada do chefe de família – senhorio patriarcal e patrimonial – e o poder impessoal público, pertencente à coletividade; separaram privado e público e impediram a identificação do poder político com a pessoa do governante. Os postos de governo eram preenchidos por eleições entre os cidadãos, de modo que o poder deixou de ser hereditário;

● separaram autoridade militar e poder civil, subordinando a primeira ao segundo. Isso não significa que em certos casos, como em Esparta e Roma, o poder político não fosse também um poder militar, mas sim que as missões militares deviam ser, primeiro, discutidas e aprovadas pela autoridade política e só depois realizadas. Os chefes militares não eram vitalícios nem seus cargos eram hereditários, mas eram eleitos periodicamente pelas assembléias dos cidadãos;

● separaram autoridade mágico-religiosa e poder temporal laico, impedindo a divinização dos governantes. Isso não significa que o poder político deixasse de ter laços com a autoridade religiosa – os oráculos, na Grécia, e os augúrios, em Roma, eram respeitados firmemente pelo poder político. Significa, porém, que os dirigentes desejavam a aprovação e a proteção dos deuses, sem que isso implicasse a divinização dos governantes e a submissão da política à autoridade sacerdotal;

● criaram a idéia e a prática da lei como expressão de uma vontade coletiva e pública, definidora dos direitos e deveres para todos os cidadãos, impedindo que fosse confundida com a vontade pessoal de um governante. Ao criarem a lei e o direito, afirmaram a diferença entre o poder político e todos os outros poderes e autoridades existentes na sociedade, pois conferiram a uma instância impessoal e coletiva o direito exclusivo ao uso da força para punir crimes, reprimir revoltas e matar para vingar, em nome da coletividade, um delito julgado intolerável por ela. Em outras palavras, retiraram dos indivíduos o direito de fazer justiça com as próprias mãos e de vingar por si mesmos uma ofensa ou um crime. O monopólio da força, da vingança e da violência passou para o Estado, sob a lei e o direito;

● criaram instituições públicas para aplicação das leis e garantia dos direitos, isto é, os tribunais e os magistrados;

● criaram a instituição do erário público ou do fundo público, isto é, dos bens e recursos que pertencem à sociedade e são por ela administrados por meio de taxas, impostos e tributos, impedindo a concentração da propriedade e da riqueza nas mãos dos dirigentes;

● criaram o espaço político ou espaço público – a assembléia grega e o senado romano -, no qual os que possuem direitos iguais de cidadania discutem suas opiniões, defendem seus interesses, deliberam em conjunto e decidem por meio do voto, podendo, também pelo voto, revogar uma decisão tomada. É esse o coração da invenção política. De fato, e como vimos, a marca do poder despótico é o segredo, a deliberação e a decisão a portas fechadas. A política, ao contrário, introduz a prática da publicidade, isto é, a exigência de que a sociedade conheça as deliberações e participe da tomada de decisão.

Além disso, a existência do espaço público de discussão, deliberação e decisão significa que a sociedade está aberta aos acontecimentos, que as ações não foram fixadas de uma vez por todas por alguma vontade transcendente, que erros de avaliação e de decisão podem ser corrigidos, que uma ação pode gerar problemas novos, não previstos nem imaginados, que exigirão o aparecimento de novas leis e novas instituições. Em outras palavras, gregos e romanos tornaram a política inseparável do tempo e, como vimos no caso da ética, ligada à noção de possível ou de possibilidade, isto é, a idéia de uma criação contínua da realidade social.

Para responder às diferentes formas assumidas pelas lutas de classes, a política é inventada de tal maneira que, a cada solução encontrada, um novo conflito ou uma nova luta podem surgir, exigindo novas soluções. Em lugar de reprimir os conflitos pelo uso da força e da violência das armas, a política aparece como trabalho legítimo dos conflitos, de tal modo que o fracasso nesse trabalho é a causa do uso da força e da violência.

A democracia ateniense e as oligarquias de Esparta e da república romana fundaram a idéia e a prática da política na Cultura ocidental. Eis por que os historiadores gregos, quando a Grécia caiu sob o domínio do império de Alexandre da Macedônia, e os historiadores romanos, quando Roma sucumbiu ao domínio do império dos césares, falaram em corrupção e decadência da política: para eles, o desaparecimento da polis e da res publica significava o retorno ao despotismo e o fim da vida política propriamente dita.

Evidentemente, não devemos cair em anacronismos, supondo que gregos e romanos instituíram uma sociedade e uma política cujos valores e princípios fossem idênticos aos nossos. Em primeiro lugar, a economia era agrária e escravista, de sorte que uma parte da sociedade – os escravos – estava excluída dos direitos políticos e da vida política. Em segundo lugar, a sociedade era patriarcal e, conseqüentemente, as mulheres também estavam excluídas da cidadania e da vida pública. A exclusão atingia também os estrangeiros e os miseráveis.

A cidadania era exclusiva dos homens adultos livres nascidos no território da Cidade. Além disso, a diferença de classe social nunca era apagada, mesmo que os pobres tivessem direitos políticos. Assim, para muitos cargos, o pré-requisito da riqueza vigorava e havia mesmo atividades portadoras de prestígio que somente os ricos podiam realizar. Era o caso, por exemplo, da liturgia grega e do evergetismo romano, isto é, de grandes doações em dinheiro à cidade para festas, construção de templos e teatros, patrocínio de jogos esportivos, de trabalhos artísticos, etc.

O que procuramos apontar não foi a criação de uma sociedade sem classes, justa e feliz, mas a invenção da política como solução e resposta que uma sociedade oferece para suas diferenças, seus conflitos e suas contradições, sem escondê-los sob a sacralização do poder e sem fechar-se à temporalidade e às mudanças.

Sociedade contra o Estado

Examinamos até aqui duas grandes respostas sociais ao poder: a resposta despótica e a política. Em ambas, a sociedade procura organizar-se economicamente – a forma da propriedade -, mantendo e mesmo criando diferenças sociais profundas entre proprietários e não-proprietários, ricos e pobres, livres e escravos, homens e mulheres. Essas diferenças engendram lutas internas, que podem levar à destruição de todos os membros do grupo social.

Para regular os conflitos, determinar limites às lutas, garantir que os ricos conservem suas riquezas e os pobres aceitem sua pobreza, surge uma chefia que, como vimos, pode tomar duas direções: ou o chefe se torna senhor das terras, armas e deuses e transforma sua vontade em lei, ou o poder é exercido por uma parte da sociedade – os cidadãos -, através de práticas e instituições públicas fundadas na lei e no direito como expressão da vontade coletiva. Nos dois casos, surge o Estado como poder separado da sociedade e encarregado de dirigi-la, comandá-la, arbitrar os conflitos e usar a força. Há, porém, um terceiro caminho.

Fomos acostumados pela tradição antropológica européia a considerar as sociedades existentes na América como atrasadas, primitivas e inferiores. Essa visão nasceu do processo de colonização e conquista, iniciado no século XVI. Os conquistadores e colonizadores que aportaram na América interpretaram as diferenças entre eles e os nativos americanos como distinção hierárquica entre superiores e inferiores: para eles os “índios” não tinham lei, rei, fé, escrita, moeda, comércio, História; eram seres desprovidos dos traços daquilo que, para o europeu cristão, súdito de monarquias, constituiria a civilização.

Sem dúvida, os conquistadores encontraram grandes impérios na América: incas, astecas e maias. Por isso, os destruíram a ferro e fogo, exterminando as gentes, pilhando as riquezas e erigindo igrejas sobre seus templos. Todavia, exceto por esses impérios destruídos, os conquistadores encontraram as demais nações americanas organizadas de maneira incompreensível para os padrões europeus. Transformaram o que eram incapazes de compreender em inferioridade dos americanos. Considerando-os selvagens e bárbaros, justificavam a escravidão, a evangelização e o extermínio.

A visão européia, depois compartilhada pelos brancos americanos, era e é etnocêntrica, isto é, considera padrões, valores e práticas dos brancos adultos proprietários europeus como universais e definidores da Cultura e da civilização. Para o etnocentrismo, portanto, os nativos americanos possuíam e possuem sociedades carentes: falta-lhes o mercado (moeda e comércio), a escrita (alfabética), a História e o Estado. Possuem, portanto, sociedades sem comércio, sem escrita, sem memória e sem Estado.

O antropólogo francês Pierre Clastres estudou essas sociedades por um prisma completamente diferente, longe do etnocentrismo costumeiro. Mostrou que possuem escrita, mas que esta não é alfabética nem ideográfica ou hieroglífica (isto é, não é a escrita conhecida pelos ocidentais e orientais), mas é simbólica, gravada nos corpos das pessoas por sinais específicos, inscrita com sinais específicos em objetos determinados e em espaços determinados. Somos nós que não sabemos lê-la.

Mostrou também que possuem memória – mitos e narrativas dos povos -, transmitida oralmente de geração em geração, transformando-se de geração em geração. Mostrou, pelas mudanças na escrita e na memória, que tais sociedades possuem História, mas que esta é inseparável da relação dos povos com a Natureza, diferentemente da nossa História, que narra como nos separamos da Natureza e como a dominamos. Mas, sobretudo, mostrou por que e como tais sociedades são contra o mercado e contra o Estado. Em outras palavras, não são sociedades sem comércio e sem Estado, mas contrárias a eles.

As sociedades indígenas estudadas por Clastres são sul-americanas, encontrando-se num estágio anterior ao das sociedades indígenas da América do Norte e dos três grandes impérios situados no México, na América Central e no norte da América do Sul. São, portanto, sociedades que não se organizaram na forma das chefias norte-americanas nem dos grandes impérios, mas inventaram uma organização deliberada para evitar aquelas duas formas de poder.

As sociedades indígenas são tribais ou comunais. Nelas, não há propriedade privada nem divisão social do trabalho, não havendo, portanto, classes sociais nem luta de classes. A propriedade é tribal ou comum e o trabalho se divide por sexo e idade. São comunidades no sentido pleno do termo, isto é, são internamente homogêneas, unas e indivisas, possuindo uma História e um destino comuns. São sociedades do cara-a-cara, onde todos se conhecem pelo nome e são vistos uns pelos outros diariamente.

Por isso mesmo, nelas o poder não se destaca nem se separa, não forma uma instância acima dela (como na política), nem fora dela (como no despotismo). A chefia não é um poder de mando a que a comunidade obedece. O chefe não manda; a comunidade não obedece. A comunidade decide para si mesma, de acordo com suas tradições e necessidades.

A oposição se estabelece não no interior da comunidade, mas em seu exterior, isto é, nas relações com as outras comunidades, portanto, no que se refere à guerra e às alianças de sangue pelo casamento. A função da chefia é representar a comunidade perante outras comunidades.

O que é e o que faz o chefe, uma vez que não tem a função do poder, pois este pertence à comunidade e dela não se separa? O chefe possui três funções: doar presentes, fazer a paz e falar.

Exprimindo a benevolência dos deuses e a prosperidade da comunidade, o chefe deve, em certos períodos, oferecer presentes a todos os membros da tribo, isto é, devolver a ela o que ela mesma produziu. A doação de presentes é a maneira deliberada que a comunidade inventou para impedir que alguém possa concentrar bens e riquezas, tornar-se proprietário privado, criar desigualdade econômica e social, de onde surgem a luta de classes e a necessidade do poder do Estado.

Quando famílias ou indivíduos entram em conflito, o chefe deve intervir. Não dispõe de códigos legais para arbitrar o conflito em nome da lei. Que faz ele? A paz. Como a obtém? Apelando para o bom senso das partes, aos bons sentimentos, à memória da comunidade, à tradição do bom convívio entre as pessoas. Em suma, através dele a comunidade fala para reafirmar-se como comunidade indivisa.

Excetuando-se a doação de presentes, a paz entre membros da comunidade, a diplomacia para tratar com outras comunidades aliadas e o direito a usar a força, liderando os guerreiros durante a guerra, a grande função da chefia situa-se na fala ou na Grande Palavra. Todas as tardes, o chefe se dirige a um local distante da aldeia, mas visível e de onde possa ser ouvido, e ali discursa. Embora ouvido, ninguém deve dar-lhe atenção e o que ele diz não é ordem ou comando obrigando à obediência. Que diz ele? Diz a palavra do poder: canta sua força e coragem, seu prestígio, sua relação com os deuses, seus grandes feitos. Mas ninguém lhe dá atenção. Ninguém o escuta.

A Grande Palavra tem significado simbólico: a comunidade lembra a si mesma, diariamente, o risco e o perigo que correria se possuísse um chefe que lhe desse ordens e ao qual devesse obedecer. A Grande Palavra simboliza a maneira pela qual a comunidade impede o advento do poder como algo separado dela e que a comandaria pela coerção da lei e das armas. Com a cerimônia da Grande Palavra, a sociedade se coloca contra o surgimento do Estado.

Toda vez que o chefe não realiza as três funções internas e a função externa tais como a comunidade as define, todas as vezes que pretende usar suas funções para criar o poder separado, ele é morto pela comunidade.

Evidentemente, nossa tendência será dizer que tal organização é própria de povos pouco numerosos e de uma vida sócio-econômica muito simples, parecendo-nos, a nós, membros de sociedades complexas e de classes, uma vaga lembrança utópica. Pierre Clastres, porém, indaga: Por que outras comunidades, mundo afora, não foram capazes de impedir o surgimento da propriedade privada, das divisões sociais de castas e classes, das desigualdades que resultaram na necessidade de criar o poder separado, seja como poder despótico, seja como poder político? Por que, afinal, os homens sucumbiram à necessidade de criar o Estado como poder de coerção social?



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[i] Na Antiguidade, família não era o que é hoje para nós (pai, mãe e filhos), mas era uma unidade econômica constituída pelos antepassados e descendentes, pai, mãe, filhos, genros, noras, tios e sobrinhos, escravos, animais, terras, edificações, plantações, bens móveis e imóveis – pessoas e coisas eram propriedades do patriarca (despotes ou pater-familias).


Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 8
O mundo da prática

Capítulo 8
As filosofias políticas – 1ª parte

A vida boa

Quando lemos os filósofos gregos e romanos, observamos que tratam a política como um valor e não como um simples fato, considerando a existência política como finalidade superior da vida humana, como a vida boa, entendida como racional, feliz e justa, própria dos homens livres. Embora considerem a forma mais alta de vida a do sábio contemplativo, isto é, do filósofo, afirmam que, para os não-filósofos, a vida superior só existe na Cidade justa e, por isso mesmo, o filósofo deve oferecer os conceitos verdadeiros que auxiliem na formulação da melhor política para a Cidade.

Política e Filosofia nasceram na mesma época. Por serem contemporâneas, diz-se que “a Filosofia é filha da polis” e muitos dos primeiros filósofos (os chamados pré-socráticos) foram chefes políticos e legisladores de suas cidades. Por sua origem, a Filosofia não cessou de refletir sobre o fenômeno político, elaborando teorias para explicar sua origem, sua finalidade e suas formas. A esses filósofos devemos a distinção entre poder despótico e poder político.

Origem da vida política

Entre as explicações sobre a origem da vida política, três foram as principais e as mais duradouras:

1. As inspiradas no mito das Idades do Homem ou da Idade de Ouro. Esse mito recebeu inúmeras versões, mas, em suas linhas gerais, narra sempre o mesmo: no princípio, durante a Idade de Ouro, os seres humanos viviam na companhia dos deuses, nasciam diretamente da terra e já adultos, eram imortais e felizes, sua vida transcorria em paz e harmonia, sem necessidade de leis e governo.

Em cada versão, a perda da Idade de Ouro é narrada de modo diverso, porém, em todas, a narrativa relata uma queda dos humanos, que são afastados dos deuses, tornam-se mortais, vivem isoladamente pelas florestas, sem vestuário, moradia, alimentação segura, sempre ameaçados pelas feras e intempéries. Pouco a pouco, descobrem o fogo: passam a cozer os alimentos e a trabalhar os metais, constroem cabanas, tecem o vestuário, fabricam armas para a caça e proteção contra animais ferozes, formam famílias.

A última idade é a Idade do Ferro, em geral descrita como a era dos homens organizados em grupos, fazendo guerra entre si. Para cessar o estado de guerra, os deuses fazem nascer um homem eminente, que redigirá as primeiras leis e criará o governo. Nasce a política com a figura do legislador, enviado pelos deuses.

Com variantes, esse mito será usado na Grécia por Platão e, em Roma, por Cícero, para simbolizar a origem da política através das leis e da figura do legislador. Leis e legislador garantem a origem racional da vida política, a obra da razão sendo a ordem, a harmonia e a concórdia entre os humanos sob a forma da Cidade. A razão funda a política.

2. As inspiradas pela obra do poeta grego Hesíodo, O trabalho e os dias. Agora, a origem da vida política vincula-se à doação do fogo aos homens, feita pelo semideus Prometeu. Graças ao fogo, os humanos podem trabalhar os metais, cozer os alimentos, fabricar utensílios e sobretudo descobrir-se diferentes dos animais. Essa descoberta leva a perceber que viverão melhor se viverem em comunidade, dividindo os trabalhos e as tarefas. Organizados em comunidades, colocam-se sob a proteção dos deuses de quem receberam as leis e as orientações para o governo.

Pouco a pouco, porém, descobrem que sua vida possui problemas e exige soluções que somente eles podem enfrentar e encontrar. Mantendo a piedade pelos deuses, entretanto, criam leis e instituições propriamente humanas, dando origem à comunidade política propriamente dita. É a teoria política defendida pelos sofistas. Nessa concepção, o desenvolvimento das técnicas e dos costumes leva a convenções entre os humanos para a vida em comunidade sob leis. A convenção funda a política.

3. As teorias que afirmam que a política decorre da Natureza e que a Cidade existe por natureza. Os humanos são, por natureza, diferentes dos animais, porque são dotados do logos, isto é, da palavra como fala e pensamento. Por serem dotados da palavra, são naturalmente sociais ou, como diz Aristóteles, são animais políticos. Não é preciso buscar nos deuses, nas leis ou nas técnicas a origem da Cidade: basta conhecer a natureza humana para nela encontrar a causa da política. Os humanos, falantes e pensantes, são seres de comunicação e é essa a causa da vida em comunidade ou da vida política. Nessa concepção, a Natureza funda a política.

Na primeira teoria, a política é o remédio que a razão encontra para a perda da felicidade da comunidade originária. Na segunda, a política resulta do desenvolvimento das técnicas e dos costumes, sendo uma convenção humana. Na terceira, enfim, a política define a própria essência do homem, e a Cidade é considerada uma instituição natural. Enquanto as duas primeiras reelaboram racionalmente as explicações míticas, a terceira parte diretamente da definição da natureza humana.

Finalidade da vida política

Para os gregos, a finalidade da vida política era a justiça na comunidade.

A noção de justiça fora, inicialmente, elaborada em termos míticos, a partir de três figuras principais: themis, a lei divina que institui a ordem do Universo; cosmos, a ordem universal estabelecida pela lei divina; e dike, a justiça entre as coisas e entre os homens, no respeito às leis divinas e à ordem cósmica. Pouco a pouco, a noção de dike torna-se a regra natural para a ação das coisas e dos homens e o critério para julgá-las.

A idéia de justiça se refere, portanto, a uma ordem divina e natural, que regula, julga e pune as ações das coisas e dos seres humanos. A justiça é a lei e a ordem do mundo, isto é, da Natureza ou physis. Lei (nomos), Natureza (physis) e ordem (cosmos) constituem, assim, o campo da idéia de justiça.

A invenção da política exigiu que as explicações míticas fossem afastadas – themis e dike deixaram de ser vistas como duas deusas que impunham ordem e leis ao mundo e aos seres humanos, passando a significar as causas que fazem haver ordem, lei e justiça na Natureza e na polis. Justo é o que segue a ordem natural e respeita a lei natural. Mas a polis existe por natureza ou por convenção entre os homens? A justiça e a lei política são naturais ou convencionais? Essas indagações colocam, de um lado, os sofistas, defensores do caráter convencional da justiça e da lei, e, de outro lado, Platão e Aristóteles, defensores do caráter natural da justiça e da lei.

Para os sofistas, a polis nasce por convenção entre os seres humanos quando percebem que lhes é mais útil a vida em comum do que em isolamento. Convencionam regras de convivência que se tornam leis, nomos. A justiça é o consenso quanto às leis e a finalidade da política é criar e preservar esse consenso.

Se a polis e as leis são convenções humanas, podem mudar, se mudarem as circunstâncias. A justiça será permitir a mudança das leis sem que isso destrua a comunidade política, e a única maneira de realizar mudanças sem destruição da ordem política é o debate para chegar ao consenso, isto é, a expressão pública da vontade da maioria, obtida pelo voto.

Por esse motivo, os sofistas se apresentavam como professores da arte da discussão e da persuasão pela palavra (retórica). Mediante remuneração, ensinavam os jovens a discutir em público, a defender e combater opiniões, ensinando-lhes argumentos persuasivos para os prós e os contras em todas as questões.

A finalidade da política era a justiça entendida como concórdia, conseguida na discussão pública de opiniões e interesses contrários. O debate dos opostos, a exposição persuasiva dos argumentos antagônicos, deviam levar à vitória do interesse mais bem argumentado, aprovado pelo voto da maioria.

Em oposição aos sofistas, Platão e Aristóteles afirmam o caráter natural da polis e da justiça. Embora concordem sob esse aspecto, diferem no modo como concebem a própria justiça.

Para Platão, os seres humanos e a polis possuem a mesma estrutura. Os humanos são dotados de três almas ou três princípios de atividade: a alma concupiscente ou desejante (situada no ventre), que busca satisfação dos apetites do corpo, tanto os necessários à sobrevivência, quanto os que, simplesmente, causam prazer; a alma irascível ou colérica (situada no peito), que defende o corpo contra as agressões do meio ambiente e de outros humanos, reagindo à dor na proteção de nossa vida; e a alma racional ou intelectual (situada na cabeça), que se dedica ao conhecimento, tanto sob a forma de percepções e opiniões vindas da experiência, quanto sob a forma de idéias verdadeiras contempladas pelo puro pensamento.

Também a polis possui uma estrutura tripartite, formada por três classes sociais: a classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, que garante a sobrevivência material da cidade; a classe militar dos guerreiros, responsável pela defesa da cidade; e a classe dos magistrados, que garante o governo da cidade sob as leis.

Um homem, diz Platão, é injusto quando a alma concupiscente (os apetites e prazeres) é mais forte do que as outras duas, dominando-as. Também é injusto quando a alma irascível (a agressividade) é mais poderosa do que a racional, dominando-a. O que é, pois, o homem justo? Aquele cuja alma racional (pensamento e vontade) é mais forte do que as outras duas almas, impondo à concupiscente a virtude da temperança ou moderação, e à irascível, a virtude da coragem, que deve controlar a concupiscência. O homem justo é o homem virtuoso; a virtude, domínio racional sobre o desejo e a cólera. A justiça ética é a hierarquia das almas, a superior dominando as inferiores.

O que é a justiça política? Essa mesma hierarquia, mas aplicada à comunidade. Como realizar a Cidade justa? Pela educação dos cidadãos – homens e mulheres (Platão não exclui as mulheres da política e critica os gregos por excluí-las). Desde a primeira infância, a polis deve tomar para si o cuidado total das crianças, educando-as para as funções necessárias à Cidade.

A educação dos cidadãos submete as crianças a uma mesma formação inicial em cujo término passam por uma seleção: as menos aptas serão destinadas à classe econômica, enquanto as mais aptas prosseguirão os estudos. Uma nova seleção separa os jovens: os menos aptos serão destinados à classe militar enquanto os mais aptos continuarão a ser educados. O novo ciclo educacional ensina as ciências aos jovens e os submete a uma última seleção: os menos aptos serão os administradores da polis enquanto os mais aptos prosseguirão os estudos. Aprendem, agora, a Filosofia, que os transformará em sábios legisladores, para que sejam a classe dirigente.

A Cidade justa é governada pelos filósofos, administrada pelos cientistas, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores. Cada classe cumprirá sua função para o bem da polis, racionalmente dirigida pelos filósofos. Em contrapartida, a Cidade injusta é aquela onde o governo está nas mãos dos proprietários – que não pensam no bem comum da polis e lutarão por interesses econômicos particulares -, ou na dos militares – que mergulharão a Cidade em guerras para satisfazer seus desejos particulares de honra e glória. Somente os filósofos têm como interesse o bem geral da polis e somente eles podem governá-la com justiça.

Por seu turno, Aristóteles terá uma teoria política diversa da dos sofistas e de Platão.

Para determinar o que é a justiça, diz ele, precisamos distinguir dois tipos de bens: os partilháveis e os participáveis. Um bem é partilhável quando é uma quantidade que pode ser dividida e distribuída – a riqueza é um bem partilhável. Um bem é participável quando é uma qualidade indivisível, que não pode ser dividida nem distribuída, podendo apenas ser participada – o poder político é um bem participável. Existem, pois, dois tipos de justiça na Cidade: a distributiva, referente aos bens econômicos; e a participativa, referente ao poder político. A Cidade justa saberá distingui-las e realizar ambas.

A justiça distributiva consiste em dar a cada um o que é devido e sua função é dar desigualmente aos desiguais para torná-los iguais. Suponhamos, por exemplo, que a polis esteja atravessando um período de fome em decorrência de secas ou enchentes e que adquira alimentos para distribuí-los a todos. Para ser justa, a Cidade não poderá reparti-los de modo igual para todos. De fato, aos que são pobres, deve doá-los, mas aos que são ricos, deve vendê-los, de modo a conseguir fundos para aquisição de novos alimentos. Se doar a todos ou vender a todos, será injusta. Também será injusta se atribuir a todos as mesmas quantidades de alimentos, pois dará quantidades iguais para famílias desiguais, umas mais numerosas do que outras.

A função ou finalidade da justiça distributiva sendo a de igualar os desiguais, dando-lhes desigualmente os bens, implica afirmar que numa cidade onde a diferença entre ricos e pobres é muito grande vigora a injustiça, pois não dá a todos o que lhes é devido como seres humanos. Na cidade injusta, em lugar de permitirem aos pobres o acesso às riquezas (por meio de limitações impostas à extensão da propriedade, de fixação da boa remuneração do trabalho dos trabalhadores pobres, de impostos e tributos que recaiam sobre os ricos apenas, etc.), vedam-lhes tal direito. Ora, somente os que não são forçados às labutas ininterruptas para a sobrevivência são capazes de uma vida plenamente humana e feliz. A Cidade injusta, portanto, impede que uma parte dos cidadãos tenha assegurado o direito à vida boa.

A justiça política consiste em respeitar o modo pelo qual a comunidade definiu a participação no poder. Essa definição depende daquilo que a Cidade mais valoriza, os regimes políticos variando em função do valor mais respeitado pelos cidadãos.

Há Cidades que valorizam a honra (isto é, a hierarquia social baseada no sangue, na terra e nas tradições), julgando o poder a honra mais alta que cabe a um só: tem-se a monarquia, onde é justo que um só participe do poder. Há Cidades que valorizam a virtude como excelência de caráter (coragem, lealdade, fidelidade ao grupo e aos antepassados), julgando que o poder cabe aos melhores: tem-se a aristocracia, onde é justo que somente alguns participem do poder. Há Cidades que valorizam a igualdade (são iguais os que são livres), consideram a diferença entre ricos e pobres econômica e não política, julgando que todos possuem o direito de participar do poder: tem-se a democracia, onde é justo que todos governem.

Os regimes políticos

Dois vocábulos gregos são empregados para compor as palavras que designam os regimes políticos: arche – o que está à frente, o que tem comando – e kratos – o poder ou autoridade suprema. As palavras compostas com arche (arquia) designam quantos estão no comando. As compostas com kratos (cracia) designam quem está no poder.

Assim, do ponto de vista da arche, os regimes políticos são: monarquia ou governo de um só (monas), oligarquia ou governo de alguns (oligos), poliarquia ou governo de muitos (polos) e anarquia ou governo de ninguém (ana).

Do ponto de vista do kratos, os regimes políticos são: autocracia (poder de uma pessoa reconhecida como rei), aristocracia (poder dos melhores), democracia (poder do povo)[i].

Na Grécia e na Roma arcaicas predominaram as monarquias. No entanto, embora os antigos reis afirmassem ter origem divina e vontade absoluta, a sociedade estava organizada de tal forma que o governante precisava submeter as decisões a um Conselho de Anciãos e à assembléia dos guerreiros ou chefes militares. Isso fez com que, pouco a pouco, o regime se tornasse oligárquico, ficando nas mãos das famílias mais ricas e militarmente mais poderosas, cujos membros se consideravam os “melhores”, donde a formação da aristocracia.

O único regime verdadeiramente democrático foi o de Atenas. Nas demais cidades gregas e em Roma, o regime político era oligárquico-aristocrático, as famílias ricas sendo hereditárias no poder, mesmo quando admitiam a entrada de novos membros no governo, pois as novas famílias também se tornavam hereditárias.

Devemos a Platão e a Aristóteles duas idéias políticas, elaboradas a partir da experiência política antiga: a primeira delas é a distinção entre regimes políticos e não-políticos; a segunda, a da transformação de um regime político em outro.

Um regime só é político se for instituído por um corpo de leis publicamente reconhecidas e sob as quais todos vivem, governantes e súditos, governantes e cidadãos. Em suma, é político o regime no qual os governantes estão submetidos às leis. Quando a lei coincide com a vontade pessoal e arbitrária do governante, não há política, mas despotismo e tirania. Quando não há lei de espécie alguma, não há política, mas anarquia.

A presença ou ausência da lei conduz à idéia de regimes políticos legítimos e ilegítimos. Um regime é legítimo quando, além de legal, é justo (as leis são feitas segundo a justiça); um regime é ilegítimo quando a lei é injusta ou quando é contrário à lei, isto é, ilegal, ou, enfim, quando não possui lei alguma.

Os regimes políticos se transformam em decorrência de mudanças econômicas – aumento do número de ricos e diminuição do número de pobres, diminuição do número de ricos e aumento do número de pobres – e de resultados de guerras – conquistas de novos territórios e populações, submissão a vencedores que conquistam a Cidade.

Presença ou ausência da lei, variação econômica e militar determinam, segundo Platão e Aristóteles, a corrupção ou decadência dos regimes políticos: a monarquia degenera em tirania, quando um só governa para servir aos seus interesses pessoais; a aristocracia degenera em oligarquia dos muito ricos – plutocracia – ou dos guerreiros – timocracia -, que também governam apenas em seu interesse próprio; a democracia degenera em demagogia e esta, em anarquia. Em geral, a anarquia leva à tirania, quando a sociedade, desgovernada, apela para um homem superior aos outros no manejo das armas e dos argumentos, nele buscando a salvação.

A tipologia platônico-aristotélica segundo o valor dos que participam do poder e a teoria da decadência ou corrupção dos regimes políticos serão mantidas até o século XVIII, aparecendo com vigor numa das obras políticas mais importantes da Ilustração, O espírito das leis, de Montesquieu. Nessa obra, encontramos também uma idéia desenvolvida por Aristóteles, para quem a variação dos regimes políticos depende de dois fatores principais: a natureza ou índole do povo e a extensão do território.

Assim, por exemplo, um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a igualdade e a liberdade e cuja Cidade é de pequena extensão territorial, naturalmente instituirá uma democracia e será mal-avisada se a substituir por um outro regime. Em contrapartida, um povo cuja índole ou natureza tende espontaneamente para a obediência a uma única autoridade e que vive num território extenso, naturalmente instituirá a monarquia, sendo desavisada se a substituir por outro regime político. Em outras palavras, os filósofos gregos legaram ao Ocidente a idéia de regimes políticos naturais.

Ética e política

Se a política tem como finalidade a vida justa e feliz, isto é, a vida propriamente humana digna de seres livres, então é inseparável da ética.

De fato, para os gregos, era inconcebível a ética fora da comunidade política – a polis como koinonia ou comunidade dos iguais -, pois nela a natureza ou essência humana encontrava sua realização mais alta.

Quando estudamos a ética, vimos que Aristóteles distinguira entre teoria e prática e, nesta, entre fabricação e ação, isto é, diferenciara poiesis e praxis. Vimos também que reservara à praxis um lugar mais alto do que à fabricação, definindo-a como ação voluntária de um agente racional em vista de um fim considerado bom. A praxis por excelência é a política. A esse respeito, na Ética a Nicômaco, escreve Aristóteles:

Se, em nossas ações, há algum fim que desejamos por ele mesmo e os outros são desejados só por causa dele, e se não escolhemos indefinidamente alguma coisa em vista de uma outra (pois, nesse caso, iríamos ao infinito e nosso desejo seria fútil e vão), é evidente que tal fim só pode ser o bem, o Sumo Bem… Se assim é, devemos abarcar, pelo menos em linhas gerais, a natureza do Sumo Bem e dizer de qual saber ele provém. Consideramos que ele depende da ciência suprema e arquitetônica por excelência. Ora, tal ciência é manifestamente a política, pois é ela que determina, entre os saberes, quais são os necessários para as Cidades e que tipos de saberes cada classe de cidadãos deve possuir… A política se serve das outras ciências práticas e legisla sobre o que é preciso fazer e do que é preciso abster-se; assim sendo, o fim buscado por ela deve englobar os fins de todas as outras, donde se conclui que o fim da política é o bem propriamente humano. Mesmo se houver identidade entre o bem do indivíduo e o da Cidade, é manifestamente uma tarefa muito mais importante e mais perfeita conhecer e salvaguardar o bem da Cidade, pois o bem não é seguramente amável mesmo para um indivíduo, mas é mais belo e mais divino aplicado a uma nação ou à Cidade.

Platão identificara a justiça no indivíduo e a justiça na polis. Aristóteles subordina o bem do indivíduo ao Bem Supremo da polis. Esse vínculo interno entre ética e política significava que as qualidades das leis e do poder dependiam das qualidades morais dos cidadãos e vice-versa, das qualidades da Cidade dependiam as virtudes dos cidadãos. Somente na Cidade boa e justa os homens poderiam ser bons e justos; e somente homens bons e justos são capazes de instituir uma Cidade boa e justa.

Romanos: a construção do príncipe

Após o primeiro período de sua história política, a época arcaica e lendária dos reis patriarcais, semi-humanos e semidivinos, Roma torna-se uma república aristocrática governada pelos grandes senhores de terras, os patrícios, e pelos representantes eleitos pela plebe, os tribunos da plebe. O poder cabe a uma instituição designada como o Senado e o Povo Romano, que pode, em certas circunstâncias previstas na lei, receber os “homens novos”, isto é, os plebeus que, por suas riquezas, casamentos ou feitos militares, passam a fazer parte do grupo governante. Roma é uma república por três motivos principais: 1. o governo está submetido a leis escritas impessoais; 2. a res publica (coisa pública) é o solo público romano, distribuído às famílias patrícias, mas pertencentes legalmente a Roma; 3. o governo administra os fundos públicos (recursos econômicos provenientes de impostos, taxas e tributos), usando-os para a construção de estradas, aquedutos, templos, monumentos e novas cidades, e para a manutenção dos exércitos.

No centro do governo estavam dois cônsules, eleitos pelo Senado e pelo Povo Romano, aos quais eram entregues dois poderes: o administrativo (gestão dos fundos e serviços públicos) e o imperium, isto é, o poder judiciário e militar. O Senado reservava para si duas autoridades: o conselho dos magistrados e a autoridade moral sobre a religião e a política.

República oligárquica, Roma é uma potência com vocação militar. Em 50 anos, conquista todo o mundo conhecido, com exceção da Índia e da China. Esse feito é obra militar dos cônsules que, como dissemos, foram investidos com o imperium (poder judiciário e militar). São imperadores.

Pouco a pouco, à medida que Roma se torna uma potência mundial, alguns dos cônsules (Júlio César, Numa, Pompeu) reivindicam mais poder e mais autoridade, que lhes vão sendo concedidos pelo Senado e pelo Povo Romano. Gradualmente, sob a aparência de uma república aristocrática, instala-se uma república monárquica, que se inicia com Júlio César e se consolidará nas mãos de Augusto. Com ele, a monarquia irá perdendo o caráter republicano até substituir o consulado, tornando-se senhorial e instituir-se como Principado. O príncipe é imperador: chefe militar, detentor do poder judiciário, magistrado, senhor das terras do império romano, autoridade suprema.

Essa mudança transparece na teoria política. Embora esta continue afirmando os valores republicanos – importância das leis, do direito e das instituições públicas, particularmente do Senado e Povo Romano – a preocupação dos teóricos estará voltada para a figura do príncipe.

Inspirando-se no governante-filósofo de Platão, os pensadores romanos, como Cícero e Sêneca, produzirão o ideal do príncipe perfeito ou do Bom Governo. A nova teoria política mantém a idéia grega de que a comunidade política tem como finalidade a vida boa ou a justiça, identificada com a ordem, harmonia ou concórdia no interior da Cidade. No entanto, agora, a justiça dependerá das qualidades morais do governante. O príncipe deve ser o modelo das virtudes para a comunidade, pois ela o imitará.

Na verdade, os pensadores romanos viram-se entre duas teorias: a platônica, que pretendia chegar à política legítima e justa educando virtuosamente os governantes; e a aristotélica, que pretendia chegar à política legítima e justa propondo qualidades positivas para as instituições da Cidade, das quais dependiam as virtudes dos cidadãos. Entre as duas, os romanos escolheram a platônica, mas tenderam a dar menor importância à organização política da sociedade (as três classes platônicas) e maior importância à formação do príncipe virtuoso.

O príncipe, como todo ser humano, é passional e racional, porém, diferentemente dos outros humanos, não poderá ceder às paixões, mas apenas à razão. Por isso, deve ser educado para possuir um conjunto de virtudes que são próprias do governante justo, ou seja, as virtudes principescas. O verdadeiro vir (varão, em latim) possui três séries de virtutes ou qualidades morais. A primeira delas é comum a todo homem virtuoso, sendo constituída pelas quatro virtudes cardeais: sabedoria ou prudência, justiça ou eqüidade, coragem e temperança ou moderação. A segunda série constitui o conjunto das virtudes propriamente principescas: honradez ou disposição para manter os princípios em todas as circunstâncias, magnanimidade ou clemência, isto é, capacidade para dar punição justa e para perdoar, e liberalidade, isto é, disposição para colocar sua riqueza a serviço do povo. Finalmente, a terceira série de virtudes refere-se aos objetivos que devem ser almejados pelo príncipe virtuoso: honra, glória e fama.

Cícero insiste em que o verdadeiro príncipe é aquele que nunca se deixa arrastar por paixões que o transformem numa besta. Não pode ter a violência do leão nem a astúcia da raposa, mas deve, em todas as circunstâncias, comportar-se como homem dotado de vontade racional. O príncipe será o Bom Governo se for um Bom Conselho, isto é, sábio, devendo buscar o amor e o respeito dos súditos.

Em contraponto ao Bom Governo, a teoria política ergue o retrato do tirano ou o príncipe vicioso: bestial, intemperante, passional, injusto, covarde, impiedoso, avarento e perdulário, sem honra, fama ou glória, odiado por todos e de todos temeroso. Inseguro e odiado, rodeia-se de soldados, vivendo isolado em fortalezas, temendo a rua e a corte.

A teoria do Bom Governo deposita na pessoa do governante a qualidade da política e faz de suas virtudes privadas, virtudes públicas. O príncipe encarna a comunidade e a espelha, sendo por ela imitado tanto na virtude quanto no vício.

O poder teológico-político: o cristianismo

Para compreendermos as teorias políticas cristãs precisamos ter em mente as duas tradições que o cristianismo recebe como herança e sobre as quais elaborará suas próprias idéias: a hebraica e a romana.

Os hebreus, embora tenham conhecido várias modalidades de governo – patriarcas, juízes, reis -, deram ao poder, sob qualquer forma em que fosse exercido, uma marca fundamental irrevogável: o caráter teocrático. Em outras palavras, consideravam eles que o poder, em sua plenitude e verdade, pertence exclusivamente a Deus e que este, por meio dos anjos e dos profetas, elege o dirigente ou os dirigentes. O poder (kratos) pertence a Deus (theos), donde: teocracia. Além disso, os hebreus se fizeram conhecer não só como Povo de Deus, mas também como Povo da Lei (a lei divina doada a Moisés e codificada por escrito). A legalidade era algo tão profundo que, quando o cristianismo se constitui como nova religião, fala-se na Antiga Lei (a aliança de Deus com o povo, prometida a Noé, Abraão e dada a Moisés) e na Nova Lei (a nova aliança de Deus com o povo, através do messias Jesus).

Do lado romano, o processo que viemos descrevendo acima prosseguiu e, no período em que o cristianismo se expande e se encontra em vias de tornar-se religião oficial do Império Romano, o príncipe já se encontra investido de novos poderes. Sendo Roma senhora do Universo, o imperador romano tenderá a ser visto como senhor do Universo, ocupando o topo da hierarquia do mundo, em cujo centro está Roma, a Cidade Eterna.

Ao imperador – ou ao césar[ii] – cabe manter a harmonia e a concórdia no mundo, a pax romana, garantida pela força das armas. Com isso, o príncipe passou a enfeixar em suas mãos todos os poderes, que antes cabiam ao Senado e Povo Romano, foi sendo sacralizado, à maneira do déspota oriental, até ser considerado divino, sendo-lhe atribuídos poderes que pertenciam a Júpiter: fundador do povo, restaurador da ordem universal e salvador do Universo.

Para cumprir suas tarefas, o poder imperial centralizado e hierarquizado, desenvolve um complexo sistema estatal em que prevalece o poderio dos funcionários imperiais (civis e militares), que se estende como uma rede intrincada de pequenos poderes por todo o território do Império Romano.

A elaboração da teoria política cristã como teologia política resultará da apropriação dessa dupla herança pelo poder eclesiástico.

A instituição eclesiástica

Quando estudamos a ética, vimos que o cristianismo, diferentemente da maioria das religiões antigas, não surge como religião nacional ou de um povo ou de um Estado determinados. No entanto, ele deveria ter sido uma religião nacional, uma vez que Jesus se apresentava como o messias esperado pelo povo judaico. Em outras palavras, se Jesus tivesse sido vitorioso, teria sido capitão, rei e sacerdote, pois era assim que o messias havia sido imaginado e esperado. Derrotado pela monarquia judaica, que usara o poder do Império Romano para julgá-lo e condená-lo, Jesus ressurge (ressuscita) como figura puramente espiritual, rei de um reino que não é deste mundo. O cristianismo se constitui, portanto, à margem do poder político e contra ele, pois os “reinos deste mundo” serão, pouco a pouco, vistos como obra de Satanás para a perdição do gênero humano.

Separado da ordem política estatal, o cristianismo será organizado de maneira semelhante a outras crenças religiosas não oficiais: tomará a forma de uma seita religiosa. Nessa época, seitas religiosas e correntes filosóficas que não possuíam a polis como referência – pois Roma tudo dominava imperialmente – não podiam mais dirigir-se a uma comunidade política determinada, a um povo determinado, e por isso dirigiam-se ao ser humano em geral, sem distinção de nação ou povo.

O poder imperial romano criara, sem o saber, a idéia do homem universal, sem pátria e sem comunidade política. O cristianismo será uma seita religiosa dirigida aos seres humanos em geral, com a promessa de salvação individual eterna. À idéia política da lei escrita e codificada em regras objetivas contrapõe a idéia de lei moral invisível (o dever à obediência a Deus e o amor ao próximo), inscrita pelo Pai no coração de cada um.

Todavia, a seita cristã irá diferenciar-se de outras porque a herança judaica – dos primeiros apóstolos – e romana – dos primeiros padres – conduzirá à idéia de povo (de Deus) e de lei (de Deus), isto é, a duas idéias políticas. A seita cristã é uma comunidade cujos membros formam o povo de Deus sob a lei de Deus. Essa comunidade é feita de iguais – os filhos de Deus redimidos pelo Filho -, que recebem em conjunto a Palavra Sagrada e, pelo batismo e eucaristia, participam da nova lei – a aliança do Pai com seu povo pela mediação do Filho. A comunidade é a ekklesia, isto é, a assembléia dos fiéis, a Igreja. E esta é designada como reino de Deus. Povo, lei, assembléia e reino: essas palavras indicam, por si mesmas, a vocação política do cristianismo, pois escolhe para referir-se a si mesmo os vocábulos da tradição política judaica e romana.

A ekklesia organiza-se a partir de uma autoridade constituída pelo próprio Cristo quando, na última ceia, autoriza os apóstolos a celebrar a eucaristia (o pão e o vinho como símbolos do corpo e sangue do messias) e, no dia de Pentecostes, ordena-lhes que preguem ao mundo inteiro a nova lei e a Boa Nova (o Evangelho).

A autoridade apostólica não se limita a batismo, eucaristia e evangelização. Jesus deu aos apóstolos o poder para ligar os homens a Deus e dele desligá-los, quando lhes disse, através de Pedro: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do reino: o que ligares na Terra será ligado no Céu, o que desligares na Terra será desligado no Céu”[iii]. Está fundada a Igreja como instituição de poder. Esse poder, como se observa, é teocrático, pois sua fonte é o próprio Deus; e é superior ao poder político temporal, uma vez que este seria puramente humano, frágil e perecível, criado por sedução demoníaca.

A ekklesia, comunidade de bons e justos, separada do Estado e do poder imperial, organiza-se com normas e regras que estabelecem hierarquias de autoridade e de poder, formando o que o romano santo Agostinho chamará de Civitas Dei, a Cidade de Deus, oposta à Cidade dos Homens, injusta e satânica, isto é, Roma.

Essa instituição eclesiástica conseguirá converter o imperador Constantino, transformará o cristianismo em religião oficial do Império Romano e absorverá a estrutura militar e burocrática do Império em sua própria organização.

O poder teológico-político

O poderio da Igreja cresce à medida que se esfacela e desmorona o Império Romano. Dois motivos levam a esse crescimento: em primeiro lugar, a expansão do próprio cristianismo pela obra da evangelização dos povos, realizada pelos padres nos territórios do Império Romano e para além deles; em segundo lugar, porque o esfacelamento de Roma, do qual resultará, nos séculos seguintes, a formação sócio-econômica conhecida como feudalismo, fragmentou a propriedade da terra (anteriormente, tida como patrimônio de Roma e do imperador) e fez surgirem pequenos poderes locais isolados, de sorte que o único poder centralizado e homogeneamente organizado era o da Igreja.

A Igreja (tanto em Roma quanto em Bizâncio, tanto no Ocidente quanto no Oriente) detém três poderes crescentes, à medida que o Império decai: 1. o poder religioso de ligar os homens a Deus e dele desligá-los; 2. o poder econômico decorrente de grandes propriedades fundiárias acumuladas no correr de vários séculos, seja porque os nobres do Império, ao se converterem, doaram suas terras à instituição eclesiástica, seja porque esta recebera terras como recompensa por serviços prestados aos imperadores; 3. o poder intelectual, porque se torna guardiã e intérprete única dos textos sagrados – a Bíblia – e de todos os textos produzidos pela cultura greco-romana – direito, filosofia, literatura, teatro, manuais de técnicas, etc. Saber ler e escrever tornou-se privilégio exclusivo da instituição eclesiástica. Será a Igreja, portanto, a formuladora das teorias políticas cristãs para os reinos e impérios cristãos. Essas teorias elaborarão a concepção teológico-política do poder, isto é, o vínculo interno entre religião e política.

As teorias teológico-políticas

Na elaboração da teologia política, os teóricos cristãos dispunham de três fontes principais: a Bíblia latina, os códigos dos imperadores romanos, conhecidos como Direito Romano, e as idéias retiradas de algumas poucas obras conhecidas de Platão, Aristóteles e sobretudo Cícero.

De Platão, vinha a idéia da comunidade justa, organizada hierarquicamente e governada por sábios legisladores. De Aristóteles, vinha a idéia de que a finalidade do poder era a justiça, como bem supremo da comunidade. De Cícero, a idéia do Bom Governo do príncipe virtuoso, espelho para a comunidade. De todos eles, a idéia de que a política era resultado da Natureza e da Razão.

No entanto, essas idéias filosóficas precisavam ser conciliadas com a outra fonte do conhecimento político, a Bíblia. E a conciliação não era fácil, uma vez que a Escritura Sagrada não considera o poder como algo natural e originado da razão, mas proveniente da vontade de Deus, sendo, portanto, teocrático.

A Bíblia, como se sabe, é um conjunto de textos de proveniências, épocas e autores muito diferentes, escritos em várias línguas – hebraico, aramaico, grego, etc. – e formando dois grupos principais, o Antigo e o Novo Testamento. Ao ser traduzida para o latim, os tradutores só dispunham da língua culta romana e dos textos que formavam o chamado Direito Romano. A tradução verteu os diferentes textos para a linguagem latina clássica, fazendo prevalecer a língua jurídica e legal romana, combinando, assim, a forte tradição legalista judaica e a latina. Essa Bíblia latinizada servirá de base para as teorias políticas e fornecerá os critérios para decidir o que aceitar e o que recusar das idéias de Platão, Aristóteles e Cícero, combinando de maneira complexa e, às vezes, pouco aceitável, as concepções filosóficas e as teocráticas.

As teorias do poder teológico-político, embora tenham recebido diferentes formulações no correr da Idade Média, variando conforme as condições históricas exigiam, apresentavam os seguintes pontos em comum:

● o poder é teocrático, isto é, pertence a Deus e dele vem aos homens por ele escolhidos para representá-lo. O fundamento dessa idéia é uma passagem do Antigo Testamento onde se lê: “Todo poder vem do Alto / Por mim reinam os reis e governam os príncipes”[iv]. O poder é um fator divino ou uma graça divina e o governante não representa os governados, mas representa Deus perante os governados. O regime político é a monarquia teocrática em que o monarca é rei pela graça de Deus. A comunidade política se forma pelo pacto de submissão dos súditos ao rei;

● o rei traz a lei em seu peito e o que apraz ao rei tem força de lei. O rei é, portanto, a fonte da lei e da justiça – afirma-se que é pai da lei e filho da justiça. Sendo autor da lei e tendo o poder pela graça de Deus, está acima das leis e não pode ser julgado por ninguém, tendo poder absoluto. O fundamento dessa idéia é retirado de um preceito do Direito Romano que afirma: “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu”.

Se não foi o povo quem deu o poder ao rei, pois o povo não tem o poder, uma vez que este a Deus pertence, o povo também não pode julgar o rei nem tirar-lhe o poder. Se um rei for tirânico e injusto, nem assim os súditos podem resistir-lhe nem depô-lo, pois ele está no poder pela vontade de Deus, que, para punir os pecados do povo, o faz sofrer sob um tirano. Este é um flagelo de Deus. Porque o poder vem do alto, porque o rei é pai da lei e está acima dela, e porque os súditos fizeram o pacto de submissão, o rei é intocável;

● o príncipe cristão deve possuir o conjunto das virtudes cristãs – fé, esperança e caridade – e o conjunto das virtudes definidos por Cícero e Sêneca como próprias do Bom Governo. Sendo o espelho da comunidade, em sua pessoa devem estar encarnadas as qualidades cristãs que a comunidade deve imitar.

Mesmo que considere a política algo natural – como dizia Aristóteles e dirão vários teólogos, como são Tomás de Aquino – e mesmo que se considere que a comunidade política é obra da razão – como diziam Platão e Cícero e afirmarão vários teólogos, como Guilherme de Ockham -, ainda assim, a finalidade suprema do poder político, isto é, o bem e a justiça, não são estritamente terrenos ou temporais, mas espirituais. O príncipe é responsável pela finalidade mais alta da política: a salvação eterna de seus súditos;

● a comunidade e o rei formam o corpo político: a cabeça é a coroa ou o rei, o peito é a legislação sob a guarda dos magistrados e conselheiros do rei, os membros superiores são os senhores ou barões que formam os exércitos do rei e a ele estão ligados por juramento de fidelidade ou de vassalagem, e os membros inferiores são o povo que trabalha para o sustento do corpo político. A polis platônica é, assim, transformada no corpo político do rei;

● a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus e natural. O mundo é um cosmos, isto é, uma ordem fixa de lugares e funções que cada ser (minerais, vegetais, animais e humanos) ocupa necessariamente e nos quais realiza sua natureza própria. Os seres do cosmos estão distribuídos em graus e o grau inferior deve obediência ao superior, submetendo-se a ele.

No caso da comunidade política, a hierarquia obedece aos critérios das funções e da riqueza, formando ordens sociais e corpos ou corporações que são órgãos do corpo político do rei. Não existe a idéia de indivíduo, mas de ordem ou corporação a que cada um pertence por vontade divina, por natureza e por hereditariedade, ninguém podendo subir ou descer na hierarquia a não ser por vontade expressa do rei. Cada um nasce, vive e morre no mesmo lugar social, transmitindo-o aos descendentes.

Esse papel central que as teorias conferem à idéia de cosmos hierárquico responde a três exigências práticas: manter a concepção imperial romana e eclesiástica, manter a concepção teocrática judaica e, sobretudo, oferecer uma garantia teórico-política a uma sociedade fragmentada em propriedades isoladas e espalhadas pelo antigo território do Império para as quais já não existe a referência urbana de Roma;

● no topo da hierarquia encontram-se o papa e o imperador. O primeiro exige o poder espiritual, o segundo, o temporal. Dada a ruralização da vida econômico-social e sua fragmentação, cada região possui um conjunto de senhores que escolhe um rei entre seus pares, garantindo-lhe – e à sua dinastia – a permanência indefinida no poder. Este só passa a outro rei se o reinante morrer sem herdeiro do sexo masculino, ou se trair seus pares e for por eles deposto, ou se houver uma guerra na qual seja derrotado e o vencedor tenha força para reivindicar o poder régio. A assembléia dos reis subordina-se ao Grande Rei ou imperador da Europa (Sacro Império Romano-Germânico), que possui o poder teocrático, isto é, ele é escolhido por Deus e não pelos outros reis;

● a justiça, finalidade da comunidade cristã, é a hierarquia de submissão e obediência do inferior ao superior, pois é essa a ordem natural criada pela lei divina. A vida temporal é inferior à vida espiritual e por isso a finalidade maior do governante é a salvação da alma imortal de seus súditos, pela qual responderá perante Deus.

Auctoritas e potestas

O vocabulário da política romana distinguia auctoritas e potestas: a primeira é o poder no sentido pleno, isto é, a autoridade para promulgar as leis e fazer a justiça; a segunda é o poder de fato para administrar coisas e pessoas. A primeira é fundadora da comunidade política; a segunda, a atividade executiva. A vida política cristã, durante toda a Idade Média, viu-se envolvida no conflito entre esses dois poderes, pois é evidente que um deles está subordinado ao outro e que a potestas e inferior à auctoritas.

No início da Idade Média não há conflito. O papa possui a autoridade espiritual, voltada para a salvação, enquanto os reis possuem a autoridade legal e a potência administrativa temporais. Pouco a pouco, porém, o conflito entre as duas autoridades se instala, expressando-se na chamada querela das investiduras.

Padres e bispos são administradores da Igreja no interior dos reinos e do conjunto formado por eles, o Sacro Império Romano-Germânico. Se são administradores, devem ser investidos em seus cargos pelo rei e pelo imperador. Isso significa, porém, que reis e imperadores passam a intervir na autoridade da Igreja e do papa, o que, para ambos, é inaceitável. Os juristas eclesiásticos elaboram uma legislação, o direito canônico, para garantir o poder do papa na investidura de padres e bispos. Essa elaboração, gradualmente, leva à teoria do poder papal como autoridade suprema à qual deve submeter-se o imperador.

As teorias teológico-políticas foram elaboradas para resolver dois conflitos que atravessam toda a Idade Média: o conflito entre o papa e o imperador, de um lado, e entre o imperador e as assembléias dos barões, de outro.

O conflito papa-imperador é conseqüência da concepção teocrática do poder. Se Deus escolhe quem deverá representá-lo, dando o poder ao escolhido, quem é este: o papa ou o imperador?

A primeira solução encontrada, após a querela das investiduras, foi trazida pelos juristas de Carlos Magno, com a teoria da dupla investidura: o imperador é investido no poder temporal pelo papa que o unge e o coroa; o papa recebe do imperador a investidura da espada, isto é, o imperador jura defender e proteger a Igreja, sob a condição de que esta nunca interfira nos assuntos administrativos e militares do império. Assim, o imperador depende do papa para receber o poder político, mas o papa depende do imperador para manter o poder eclesiástico.

O conflito entre o imperador e as assembléias dos barões e reis diz respeito à escolha do imperador. Este conflito revela o problema de uma política fundada em duas fontes antagônicas. De fato, barões e reis invocam a chamada Lei Régia Romana, segundo a qual o governante recebe do povo o poder, sendo, portanto, ocupante eleito do poder. Barões e reis afirmam que são os instituidores do imperador. Este, porém, invoca a Bíblia e a origem teocrática do poder, afirmando que seu poder não vem dos barões e reis, mas de Deus.

A solução será trazida pela teoria que distingue entre eleição e unção. O imperador, de fato, é eleito pelos pares para o cargo, mas só terá o poder através da unção com óleos santos – afirma-se que é ungido com o mesmo óleo que ungiu Davi e Salomão – e quem unge o imperador é a Igreja, isto é, o papa.

Como se observa, a teoria da dupla investidura e da distinção entre eleição e unção deixa o imperador à mercê do papa. Para fortalecer o imperador contra o papa, os reis e os barões, é elaborada uma teoria, que, mais tarde, sustentará as teorias da monarquia absoluta por direito divino. Trata-se da teologia política dos dois corpos do rei (isto é, do imperador).

Um rei-pela-graça-de-Deus é a imitação de Jesus Cristo. Jesus possui duas naturezas: a humana, mortal, e a mística ou divina, imortal. Como Jesus, o rei tem dois corpos: um corpo humano, que nasce, vive, adoece, envelhece e morre, e um corpo místico, perene e imortal, seu corpo político. O corpo político do rei não nasce, nem adoece, envelhece ou morre. Por isso, ninguém, a não ser Deus, pode lhe dar esse corpo, e ninguém, a não ser Deus, pode tirar-lhe tal corpo. Não o recebe nem dos barões e reis, nem do papa, e não pode ser-lhe tirado pelos reis, pelos barões ou pelo papa.

O que é o corpo místico-político do rei? A coroa, o cetro, o manto, a espada, o trono, as terras, as leis, os impostos e tributos e seus descendentes ou sua dinastia. Filho da justiça, pai da lei, marido da terra e de tudo o que nela existe, o rei é inviolável e eterno porque é imitação do Cristo e imagem de Deus. Nem eleito nem deposto por ninguém, o poder político do rei o coloca fora e acima da comunidade, tornando-o transcendente a ela.

Em relação ao papa, a teoria dos dois corpos do rei dá ao imperador uma força teológica semelhante àquela que a doação das Chaves do Reino dava ao Vigário de Cristo. Em relação aos reis e barões, a teoria dá ao imperador a inviolabilidade do cargo e, mais do que isso, faz com que seja ele o doador de poder a seus inferiores. Reis e barões terão poder por um favor do imperador, assim como este recebe poder por um favor de Deus.

O dualismo do poder

No final da Idade Média, sobretudo com a retomada das obras de Aristóteles pelos teólogos, haverá um esforço para separar a Cidade de Deus – a Igreja – e a Cidade dos Homens – a comunidade política.

Considera-se que a primeira foi instituída e fundada diretamente por Deus com a doação das Chaves do Reino aos apóstolos, mas a segunda foi instituída ou fundada pela Natureza, que fez o homem um ser racional e um animal político. Sem dúvida, a boa cidade é a cidade dos homens cristã, em harmonia com a Cidade de Deus, mas as instituições políticas devem ser consideradas humanas, criadas em concordância com a ordem e a lei naturais, derivadas da lei divina eterna.

Um dos teóricos mais importantes da naturalidade da política é o teólogo são Tomás de Aquino, para quem, sendo o homem um animal social, a sociabilidade natural já existia no Paraíso, antes da queda e da expulsão dos seres humanos. Após o pecado original, os seres humanos não perderam sua natureza sociável e, por isso, naturalmente organizaram-se em comunidades, deram-se leis e instituíram as relações de mando e obediência, criando o poder político.

Diferentemente de santo Agostinho, para quem o pecado tornara o homem perverso e violento, injusto e fundador da Cidade dos Homens, injusta como ele, para são Tomás, os humanos perderam a inocência original, mas não perderam a natureza original que lhes fora dada por Deus. Por esse motivo, neles permaneceu o senso de justiça, entendida como o dever de dar a cada um o que lhe é devido, e com ela fundaram a comunidade política.

A finalidade da comunidade política é a ordem – o inferior deve obedecer ao superior – e a justiça – dar a cada um segundo suas necessidades e méritos. Ordem e justiça definem a comunidade política como o único instrumento humano legítimo para assegurar o bem comum.

Na mesma linha de separação entre poder espiritual da Igreja e poder temporal da comunidade política, encontra-se o teólogo inglês Guilherme de Ockham, que, para melhor definir a justiça e o bem comum, introduz a idéia de direito subjetivo natural.

Para que a comunidade política possa realizar a justiça, isto é, dar a cada um o que lhe é devido segundo suas necessidades e seus méritos, é preciso que o legislador e o magistrado possuam um critério ou uma medida que defina o justo. Essa medida é o direito subjetivo natural de cada um e de todos os homens como o direito à vida, à consciência e aos bens materiais e espirituais necessários à garantia da vida e da consciência.

Com são Tomás e Ockham, novas idéias são trazidas à teoria política, ainda que continue teológica, isto é, referida à vontade suprema de Deus. Diante da tradição teocrática medieval, são novas as idéias de comunidade política natural, lei humana política e direito natural dos indivíduos como sujeitos dotados de consciência e de vontade.

Os dois teólogos mantêm a idéia de bom governo do príncipe cristão virtuoso e a de que a monarquia é a forma natural e melhor de governo, a mais adequada para realizar a justiça como bem comum. Conservam também a idéia de hierarquia natural criada pela lei divina eterna e concretizada pela lei natural. Finalmente, introduzem o primeiro esboço do que viria a ser conhecido, com a Reforma Protestante, como o direito de resistência dos súditos do tirano.

Os governados não podem depor nem matar o tirano, mas podem resistir a ele, buscando instrumentos legais que contestem sua autoridade, forçando-o a abdicar do poder. Um dos instrumentos legais mais importantes para isso é a idéia de direito subjetivo natural: quando este é violado pelo governante, o governo se torna ilegítimo, o pacto de submissão perde a validade e o governante deve abdicar do poder.



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[i] Os termos compostos com cracia são: autos, eu mesmo, eu próprio, si mesmo; aristos, o melhor, o mais excelente; demos, o povo.

[ii] Título dos imperadores romanos de Augusto (63 a.C.-14 a.C.) a Adriano (76-138). [Nota de Pausa para a Filosofia.]

[iii] Mt 16.18-19: “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão sobre ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus: o que ligares na terra, terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra, terá sido desligado nos céus.” [Nota de Pausa para a Filosofia.]

[iv] Pv 8.15-16: “Por meu intermédio reinam os reis, e os príncipes decretam justiça. Por meu intermédio governam os príncipes, os nobres e todos os juízes da terra.” [Nota de Pausa para a Filosofia.]


Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 8
O mundo da prática

Capítulo 9
As filosofias políticas – 2ª parte

O ideal republicano

À volta dos castelos feudais, durante a Idade Média, formaram-se aldeias ou burgos. Enquanto na sociedade como um todo prevalecia a relação de vassalagem – juramento de fidelidade prestado por um inferior a um superior que prometia proteger o vassalo -, nos burgos, a divisão social do trabalho fez aparecer uma outra organização social, a corporação de ofício. Tecelões, pedreiros, ferreiros, médicos, arquitetos, comerciantes, etc. organizavam-se em confrarias, em que os membros estavam ligados por um juramento de confiança recíproca.

Embora internamente as corporações também fossem hierárquicas, era possível, a partir de regras convencionadas entre seus membros, ascender na hierarquia e, externamente, nas relações com outras corporações, todos eram considerados livres e iguais. As corporações fazem surgir uma nova classe social que, nos séculos seguintes, irá tornar-se economicamente dominante e buscará também o domínio político: a burguesia, nascida nos burgos.

Desde o início do século XV, em certas regiões da Europa, as antigas cidades do Império Romano e as novas cidades surgidas dos burgos medievais entram em desenvolvimento econômico e social. Grandes rotas comerciais tornam poderosas as corporações e as famílias de comerciantes, enquanto o poderio agrário dos barões começa a diminuir.

As cidades estão iniciando o que viria a ser conhecido como capitalismo comercial ou mercantil. Para desenvolvê-lo, não podem continuar submetidas aos padrões, às regras e aos tributos da economia feudal agrária e iniciam lutas por franquias econômicas. As lutas econômicas da burguesia nascente contra a nobreza feudal prosseguem sob a forma de reivindicações políticas: as cidades desejam independência em face de barões, reis, papas e imperadores.

Na Itália, a redescoberta das obras de pensadores, artistas e técnicos da cultura greco-romana, particularmente das antigas teorias políticas, suscitam um ideal político novo: o da liberdade republicana contra o poder teológico-político de papas e imperadores.

Estamos no período conhecido como Renascimento, no qual se espera reencontrar o pensamento, as artes, a ética, as técnicas e a política existentes antes que o saber tivesse sido considerado privilégio da Igreja e os teólogos houvessem adquirido autoridade para decidir o que poderia e o que não poderia ser pensado, dito e feito. Filósofos, historiadores, dramaturgos, retóricos, tratados de medicina, biologia, arquitetura, matemática, enfim, tudo o que fora criado pela cultura antiga é lido, traduzido, comentado e aplicado.

Esparta, Atenas e Roma são tomadas como exemplos da liberdade republicana. Imitá-las e valorizar a prática política, a vita activa, contra o ideal da vida espiritual contemplativa imposto pela Igreja. Fala-se, agora, na liberdade republicana e na vida política como as formas mais altas da dignidade humana.

Nesse ambiente, entre 1513 e 1514, em Florença, é escrita a obra que inaugura o pensamento político moderno: O príncipe, de Maquiavel.

Antes de “O príncipe”

Embora diferentes e, muitas vezes, contrárias, as obras políticas medievais e renascentistas operam num mundo cristão. Isso significa que, para todas elas, a relação entre política e religião é um dado de que não podem escapar. É verdade que as teorias medievais são teocráticas, enquanto as renascentistas procuram evitar a idéia de que o poder seria uma graça ou um fator divino; no entanto, embora recusem a teocracia, não podem recusar uma outra idéia cristã, qual seja, a de que o poder político só é legítimo se for justo e só será justo se estiver de acordo com a vontade de Deus e a Providência divina. Assim, elementos de teologia continuam presentes nas formulações teóricas da política.

Se deixarmos de lado as diferenças entre medievais e renascentistas e considerarmos suas obras políticas como cristãs, poderemos perceber certos traços comuns a todas elas:

● encontram um fundamento para a política anterior e exterior à própria política. Em outras palavras, para uns, o fundamento da política encontra-se em Deus (seja na vontade divina, que doa o poder aos homens, seja na Providência divina, que favorece o poder de alguns homens); para outros, encontra-se na Natureza, isto é, na ordem natural, que fez o homem um ser naturalmente político; e, para alguns, encontra-se na razão, isto é, na idéia de que existe uma racionalidade que governa o mundo e os homens, torna-os racionais e os faz instituir a vida política. Há, pois, algo – Deus, Natureza ou razão – anterior e exterior à política, servindo de fundamento a ela;

● afirmam que a política é instituição de uma comunidade una e indivisa, cuja finalidade é realizar o bem comum ou justiça. A boa política é feita pela boa comunidade harmoniosa, pacífica e ordeira. Lutas, conflitos e divisões são vistos como perigos, frutos de homens perversos e sediciosos, que devem, a qualquer preço, ser afastados da comunidade e do poder;

● assentam a boa comunidade e a boa política na figura do bom governo, isto é, no príncipe virtuoso e racional, portador da justiça, da harmonia e da indivisão da comunidade;

● classificam os regimes políticos em justos-legítimos e injustos-ilegítimos, colocando a monarquia e a aristocracia hereditárias entre os primeiros e identificando com os segundos o poder obtido por conquista e usurpação, denominando-o tirânico. Este é considerado antinatural, irracional, contrário à vontade de Deus e à justiça, obra de um governante vicioso e perverso.

Em relação à tradição do pensamento político, a obra de Maquiavel é demolidora e revolucionária.

Maquiavélico, maquiavelismo

Estamos acostumados a ouvir as expressões maquiavélico e maquiavelismo. São usadas quando alguém deseja referir-se tanto à política quanto aos políticos, quanto a certas atitudes das pessoas, mesmo quando não ligadas diretamente a uma ação política (fala-se, por exemplo, num comerciante maquiavélico, numa professora maquiavélica, no maquiavelismo de certos jornais, etc.).

Quando ouvimos ou empregamos essas expressões? Sempre que pretendemos julgar a ação ou a conduta de alguém desleal, hipócrita, fingidor, poderosamente malévolo, que brinca com sentimentos e desejos dos outros, mente-lhes, faz a eles promessas que sabe que não cumprirá, usa a boa-fé alheia em seu próprio proveito.

Falamos num “poder maquiavélico” para nos referirmos a um poder que age secretamente nos bastidores, mantendo suas intenções e finalidades desconhecidas para os cidadãos; que afirma que os fins justificam os meios e usa meios imorais, violentos e perversos para conseguir o que quer; que dá as regras do jogo, mas fica às escondidas, esperando que os jogadores causem a si mesmos sua própria ruína e destruição.

Maquiavélico e maquiavelismo fazem pensar em alguém extremamente poderoso e perverso, sedutor e enganador, que sabe levar as pessoas a fazerem exatamente o que ele deseja, mesmo que sejam aniquiladas por isso. Como se nota, maquiavélico e maquiavelismo correspondem àquilo que, em nossa cultura, é considerado diabólico.

Que teria escrito Maquiavel para que gente que nunca leu sua obra e que nem mesmo sabe que existiu, um dia, em Florença, uma pessoa com esse nome, fale em maquiavélico e maquiavelismo?

A revolução maquiavelista

Diferentemente dos teólogos, que partiam da Bíblia e do Direito Romano para formular teorias políticas, e, diferentemente dos contemporâneos renascentistas, que partiam das obras dos filósofos clássicos para construir suas teorias políticas, Maquiavel parte da experiência real de seu tempo.

Foi diplomata e conselheiro dos governantes de Florença, via as lutas européias de centralização monárquica (França, Inglaterra, Espanha, Portugal), viu a ascensão da burguesia comercial das grandes cidades e sobretudo viu a fragmentação da Itália, dividida em reinos, ducados, repúblicas e Igreja. A compreensão dessas experiências históricas e a interpretação do sentido delas o conduziram à idéia de que uma nova concepção da sociedade e da política tornara-se necessária, sobretudo para a Itália e para Florença.

Sua obra funda o pensamento político moderno porque busca oferecer respostas novas a uma situação histórica nova, que seus contemporâneos tentavam compreender lendo os autores antigos, deixando escapar a observação dos acontecimentos que ocorriam diante de seus olhos.

Se compararmos o pensamento político de Maquiavel com os quatro pontos nos quais resumimos a tradição política, observaremos por onde passa a ruptura maquiavelista:

1. Maquiavel não admite um fundamento anterior e exterior à política (Deus, Natureza ou razão). Toda Cidade, diz ele em O príncipe, está originariamente dividida por dois desejos opostos: o desejo dos grandes de oprimir e comandar e o desejo do povo de não ser oprimido nem comandado. Essa divisão evidencia que a Cidade não é uma comunidade homogênea nascida da vontade divina, da ordem natural ou da razão humana. Na realidade, a Cidade é tecida por lutas internas que a obrigam a instituir um pólo superior que possa unificá-la e dar-lhe identidade. Esse pólo é o poder político. Assim, a política nasce das lutas sociais e é obra da própria sociedade para dar a si mesma unidade e identidade. A política resulta da ação social a partir das divisões sociais;

2. Maquiavel não aceita a idéia da boa comunidade política constituída para o bem comum e a justiça. Como vimos, o ponto de partida da política para ele é a divisão social entre os grandes e o povo. A sociedade é originariamente dividida e jamais pode ser vista como uma comunidade una, indivisa, homogênea, voltada para o bem comum. Essa imagem da unidade e da indivisão, diz Maquiavel, é uma máscara com que os grandes recobrem a realidade social para enganar, oprimir e comandar o povo, como se os interesses dos grandes e dos populares fossem os mesmos e todos fossem irmãos e iguais numa bela comunidade.

A finalidade política não é, como diziam os pensadores gregos, romanos e cristãos, a justiça e o bem comum, mas, como sempre souberam os políticos, a tomada e manutenção do poder. O verdadeiro príncipe é aquele que sabe tomar e conservar o poder e que, para isso, jamais deve aliar-se aos grandes, pois estes são seus rivais e querem o poder para si, mas deve aliar-se ao povo, que espera do governante a imposição de limites ao desejo de opressão e mando dos grandes. A política não é a lógica racional da justiça e da ética, mas a lógica da força transformada em lógica do poder e da lei;

3. Maquiavel recusa a figura do bom governo encarnada no príncipe virtuoso, portador das virtudes cristãs, das virtudes morais e das virtudes principescas. O príncipe precisa ter virtu, mas esta é propriamente política, referindo-se às qualidades do dirigente para tomar e manter o poder, mesmo que para isso deva usar a violência, a mentira, a astúcia e a força. A tradição afirmava que o governante devia ser amado e respeitado pelos governados. Maquiavel afirma que o príncipe não pode ser odiado.

Isso significa, em primeiro lugar, que deve ser respeitado e temido – o que só é possível se não for odiado. Significa, em segundo lugar, que não precisa ser amado, pois isto o faria um pai para a sociedade e, sabemos, um pai conhece apenas um tipo de poder, o despótico. A virtude política do príncipe aparecerá na qualidade das instituições que soube criar e manter e na capacidade que tiver para enfrentar as ocasiões adversas, isto é, a fortuna ou sorte;

4. Maquiavel não aceita a divisão clássica dos três regimes políticos (monarquia, aristocracia, democracia) e suas formas corruptas ou ilegítimas (tirania, oligarquia, demagogia/anarquia), como não aceita que o regime legítimo seja o hereditário e o ilegítimo, o usurpado por conquista. Qualquer regime político – tenha a forma que tiver e tenha a origem que tiver – poderá ser legítimo ou ilegítimo. O critério de avaliação, ou o valor que mede a legitimidade e a ilegitimidade, é a liberdade.

Todo regime político em que o poderio de opressão e comando dos grandes é maior do que o poder do príncipe e esmaga o povo é ilegítimo; caso contrário, é legítimo. Assim, legitimidade e ilegitimidade dependem do modo como as lutas sociais encontram respostas políticas capazes de garantir o único princípio que rege a política: o poder do príncipe deve ser superior ao dos grandes e estar a serviço do povo. O príncipe pode ser monarca hereditário ou por conquista; pode ser todo um povo que conquista, pela força, o poder. Qualquer desses regimes políticos será legítimo se for uma república e não despotismo ou tirania, isto é, só é legítimo o regime no qual o poder não está a serviço dos desejos e interesses de um particular ou de um grupo de particulares.

Dissemos que a tradição grega tornara ética e política inseparáveis, que a tradição romana colocara essa identidade da ética e da política na pessoa virtuosa do governante e que a tradição cristã transformara a pessoa política num corpo místico sacralizado que encarnava a vontade de Deus e a comunidade humana. Hereditariedade, personalidade e virtude formavam o centro da política, orientada pela idéia de justiça e bem comum. Esse conjunto de idéias e imagens é demolido por Maquiavel. Um dos aspectos da concepção maquiavelista que melhor revela essa demolição encontra-se na figura do príncipe virtuoso.

Quando estudamos a ética, vimos que a questão central posta pelos filósofos sempre foi: O que está e o que não está em nosso poder? Vimos também que “estar em nosso poder” significava a ação voluntária racional livre, própria da virtude, e “não estar em nosso poder” significava o conjunto de circunstâncias externas que agem sobre nós e determinam nossa vontade e nossa ação. Vimos, ainda, que esse conjunto de circunstâncias que não dependem de nós nem de nossa vontade foi chamado pela tradição filosófica de fortuna. A oposição virtude-fortuna jamais abandonou a ética e, como esta surgia inseparável da política, a mesma oposição se fez presente no pensamento político. Neste, o governante virtuoso é aquele cujas virtudes não sucumbem ao poderio da caprichosa e inconstante fortuna.

Maquiavel retoma essa oposição, mas lhe imprime um sentido inteiramente novo. A virtu do príncipe não consiste num conjunto fixo de qualidades morais que ele oporá à fortuna, lutando contra ela. A virtu é a capacidade do príncipe para ser flexível às circunstâncias, mudando com elas para agarrar e dominar a fortuna. Em outras palavras, um príncipe que agir sempre da mesma maneira e de acordo com os mesmos princípios em todas as circunstâncias fracassará e não terá virtu alguma.

Para ser senhor da sorte ou das circunstâncias, deve mudar com elas e, como elas, ser volúvel e inconstante, pois somente assim saberá agarrá-las e vencê-las. Em certas circunstâncias, deverá ser cruel, em outras, generoso; em certas ocasiões deverá mentir, em outras, ser honrado; em certos momentos, deverá ceder à vontade dos outros, em algumas, ser inflexível. O ethos ou caráter do príncipe deve variar com as circunstâncias, para que sempre seja senhor delas.

A fortuna, diz Maquiavel, é sempre favorável a quem desejar agarrá-la. Oferece-se como um presente a todo aquele que tiver ousadia para dobrá-la e vencê-la. Assim, em lugar da tradicional oposição entre a constância do caráter virtuoso e a inconstância da fortuna, Maquiavel introduz a virtude política como astúcia e capacidade para adaptar-se às circunstâncias e aos tempos, como ousadia para agarrar a boa ocasião e força para não ser arrastado pelas más.

A lógica política nada tem a ver com as virtudes éticas dos indivíduos em sua vida privada. O que poderia ser imoral do ponto de vista da ética privada pode ser virtu política. Em outras palavras, Maquiavel inaugura a idéia de valores políticos medidos pela eficácia prática e pela utilidade social, afastados dos padrões que regulam a moralidade privada dos indivíduos. O ethos político e o ethos moral são diferentes e não há fraqueza política maior do que o moralismo que mascara a lógica real do poder.

Por ter inaugurado a teoria moderna da lógica do poder como independente da religião, da ética e da ordem natural, Maquiavel só poderia ter sido visto como “maquiavélico”. As palavras maquiavélico e maquiavelismo, criadas no século XVI e conservadas até hoje, exprimem o medo que se tem da política quando esta é simplesmente política, isto é, sem as máscaras da religião, da moral, da razão e da Natureza.

Para o Ocidente cristão do século XVI, o príncipe maquiavelista, não sendo o bom governo sob Deus e a razão, só poderia ser diabólico. À sacralização do poder, feita pela teologia política, só poderia opor-se a demonização. É essa imagem satânica da política como ação social puramente humana que os termos maquiavélico e maquiavelismo designam.

O mundo desordenado

A obra de Maquiavel, criticada em toda a parte, atacada por católicos e protestantes, considerada atéia e satânica, tornou-se, porém, a referência obrigatória do pensamento político moderno. A idéia de que a finalidade da política é a tomada e conservação do poder e que este não provém de Deus, nem da razão, nem de uma ordem natural feita de hierarquias fixas exigiu que os governantes justificassem a ocupação do poder. Em alguns casos, como na França e na Prússia, surgirá a teoria do direito divino dos reis, baseada na reformulação jurídica da teologia política do “rei pela graça divina” e dos “dois corpos do rei”. Na maioria dos países, porém, a concepção teocrática não foi mantida e, partindo de Maquiavel, os teóricos tiveram que elaborar novas teorias políticas.

Para compreendermos os conceitos que fundarão essas novas teorias precisamos considerar alguns acontecimentos históricos que mudaram a face econômica e social da Europa, entre os séculos XV e XVII.

Já mencionamos, ao tratar do ideal republicano, o novo papel das cidades e da nova classe social – a burguesia – no plano econômico, social e político. Outros fatores, além do crescimento das corporações de ofício e do comércio, são também importantes para o fortalecimento dessa nova classe:

● a decadência e ruína de inúmeras famílias aristocráticas, cujas riquezas foram consumidas nas guerras das Cruzadas contra os árabes e cujas terras ficaram abandonadas porque seus nobres senhores partiram para a guerra e ali morreram sem deixar herdeiros. Outros contraíram dívidas com a coroa para compra de armamentos e pagamentos de exércitos para as Cruzadas, suas terras sendo confiscadas pelo rei para cobrir as dívidas. Os servos da gleba, que trabalhavam nessas propriedades, bem como os camponeses pobres e livres, que as arrendavam em troca de serviços, migravam para as cidades, tornando-se membros das corporações de ofícios ou servos urbanos de famílias nobres que haviam passado a dedicar-se ao comércio;

● a decadência agrária foi acelerada também por uma grande peste que assolou a Europa no final da Idade Média – a chamada peste negra -, que dizimou gente, gado e colheitas, arruinando a nobreza fundiária e causando migrações para as cidades;

● a vida urbana provocou o crescimento de atividades artesanais e, com elas, o desenvolvimento comercial para compra e venda dos produtos, criando especialidades regionais e o intercâmbio comercial em toda a Europa;

● as grandes rotas do comércio com o Oriente, dominadas, primeiro, pelas cidades italianas e, depois, pelos impérios ultramarinos de Portugal, Espanha, Inglaterra e França, deram origem a um novo tipo de riqueza, o capital, baseado no lucro advindo da exploração do trabalho dos homens pobres e livres que haviam migrado para as cidades e na exploração do trabalho escravo de nativos e negros nas Américas.

Nas cidades, primeiro, e no campo, depois, a miséria e as péssimas condições de trabalho e de vida levam os pobres a revoltas contra os ricos. No campo, tais revoltas foram um dos efeitos da Reforma Protestante, que acusara a Igreja e a nobreza de cometerem o pecado da ambição, explorando e oprimindo os pobres. Nas cidades, as revoltas populares eram também um efeito da Reforma Protestante, que havia declarado a igualdade dos seres humanos, afirmando como principal virtude o trabalho e principal vício a preguiça.

O desenvolvimento econômico das cidades, o surgimento da burguesia comerciante ou mercantil, o crescimento da classe dos trabalhadores pobres, mas livres (isto é, sem laços de servidão com os senhores feudais), a Reforma Protestante que questionara o poder econômico e político da Igreja, as revoltas populares, a guerra entre potências pelo domínio dos mares e dos novos territórios descobertos, a queda de reis e de famílias da nobreza, a ascensão de famílias comerciantes e de novos reis que as favoreciam contra os nobres, todos esses fatos evidenciavam que a idéia cristã, herdada do Império Romano e consolidada pela Igreja Romana, de um mundo constituído naturalmente por hierarquias era uma idéia que não correspondia à realidade.

A nova situação histórica fazia aparecer dois fatos impossíveis de negar:

1. a existência de indivíduos – um burguês e um trabalhador não podiam invocar sangue, família, linhagem e dinastia para explicar por que existiam e por que haviam mudado de posição social, mas só podiam invocar a si mesmos como indivíduos;

2. a existência de conflitos entre indivíduos e grupos de indivíduos pela posse de riquezas, cargos, postos e poderes anulava a imagem da comunidade cristã, una, indivisa e fraterna.

Os teóricos precisavam, portanto, explicar o que eram os indivíduos e por que lutavam mortalmente uns contra os outros, além de precisarem oferecer teorias capazes de solucionar os conflitos e as guerras sociais. Em outras palavras, foram forçados a indagar qual é a origem da sociedade e da política. Por que indivíduos isolados formam uma sociedade? Por que indivíduos independentes aceitam submeter-se ao poder político e às leis?

A resposta a essas duas perguntas conduz às idéias de Estado de Natureza e Estado Civil.

Estado de Natureza, contrato social, Estado Civil

O conceito de Estado de Natureza tem a função de explicar a situação pré-social na qual os indivíduos existem isoladamente. Duas foram as principais concepções do Estado de Natureza:

1. a concepção de Hobbes (no século XVII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados e em luta permanente, vigorando a guerra de todos contra todos ou “o homem lobo do homem”. Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar;

2. a concepção de Rousseau (no século XVIII), segundo a qual, em Estado de Natureza, os indivíduos vivem isolados pelas florestas, sobrevivendo com o que a Natureza lhes dá, desconhecendo lutas e comunicando-se pelo gesto, o grito e o canto, numa língua generosa e benevolente. Esse estado de felicidade original, no qual os humanos existem sob a forma do bom selvagem inocente, termina quando alguém cerca um terreno e diz: “É meu”. A divisão entre o meu e o teu, isto é, a propriedade privada, dá origem ao Estado de Sociedade, que corresponde, agora, ao Estado de Natureza hobbesiano da guerra de todos contra todos.

O Estado de Natureza de Hobbes e o Estado de Sociedade de Rousseau evidenciam uma percepção do social como luta entre fracos e fortes, vigorando a lei da selva ou o poder da força. Para cessar esse estado de vida ameaçador e ameaçado, os humanos decidem passar à sociedade civil, isto é, ao Estado Civil, criando o poder político e as leis.

A passagem do Estado de Natureza à sociedade civil se dá por meio de um contrato social, pelo qual os indivíduos renunciam à liberdade natural e à posse natural de bens, riquezas e armas e concordam em transferir a um terceiro – o soberano – o poder para criar e aplicar as leis, tornando-se autoridade política. O contrato social funda a soberania.

Como é possível o contrato ou o pacto social? Qual sua legitimidade? Os teóricos invocarão o Direito Romano – “Ninguém pode dar o que não tem e ninguém pode tirar o que não deu” – e a Lei Régia romana – “O poder é conferido ao soberano pelo povo” – para legitimar a teoria do contrato ou do pacto social.

Parte-se do conceito de direito natural: por natureza, todo indivíduo tem direito à vida, ao que é necessário à sobrevivência de seu corpo, e à liberdade. Por natureza, todos são livres, ainda que, por natureza, uns sejam mais fortes e outros mais fracos. Um contrato ou um pacto, dizia a teoria jurídica romana, só tem validade se as partes contratantes forem livres e iguais e se voluntária e livremente derem seu consentimento ao que está sendo pactuado.

A teoria do direito natural garante essas duas condições para validar o contrato social ou o pacto político. Se as partes contratantes possuem os mesmos direitos naturais e são livres, possuem o direito e o poder para transferir a liberdade a um terceiro; e se consentem voluntária e livremente nisso, então dão ao soberano algo que possuem, legitimando o poder da soberania. Assim, por direito natural, os indivíduos formam a vontade livre da sociedade, voluntariamente fazem um pacto ou contrato e transferem ao soberano o poder para dirigi-los.

Para Hobbes, os homens reunidos numa multidão de indivíduos, pelo pacto, passam a constituir um corpo político, uma pessoa artificial criada pela ação humana e que se chama Estado. Para Rousseau, os indivíduos naturais são pessoas morais, que, pelo pacto, criam a vontade geral como corpo moral coletivo ou Estado.

A teoria do direito natural e do contrato evidencia uma inovação de grande importância: o pensamento político já não fala em comunidade, mas em sociedade. A idéia de comunidade pressupõe um grupo humano uno, homogêneo, indiviso, compartilhando os mesmos bens, as mesmas crenças e idéias, os mesmos costumes e possuindo um destino comum. A idéia de sociedade, ao contrário, pressupõe a existência de indivíduos independentes e isolados, dotados de direitos naturais e individuais, que decidem, por um ato voluntário, tornarem-se sócios ou associados para vantagem recíproca e por interesses recíprocos. A comunidade é a idéia de uma coletividade natural ou divina; a sociedade, a de uma coletividade voluntária, histórica e humana.

A sociedade civil é o Estado propriamente dito. Trata-se da sociedade vivendo sob o direito civil, isto é, sob as leis promulgadas e aplicadas pelo soberano. Feito o pacto ou o contrato, os contratantes transferiram o direito natural ao soberano e com isso o autorizam a transformá-lo em direito civil ou direito positivo, garantindo a vida, a liberdade e a propriedade privada dos governados. Estes transferiram ao soberano o direito exclusivo ao uso da força e da violência, da vingança contra os crimes, da regulamentação dos contratos econômicos, isto é, a instituição jurídica da propriedade privada, e de outros contratos sociais (como, por exemplo, o casamento civil, a legislação sobre a herança, etc.).

Quem é o soberano? Hobbes e Rousseau diferem na resposta a essa pergunta.

Para Hobbes, o soberano pode ser um rei, um grupo de aristocratas ou uma assembléia democrática. O fundamental não é o número de governantes, mas a determinação de quem possui o poder ou a soberania. Esta pertence de modo absoluto ao Estado, que, por meio das instituições públicas, tem o poder para promulgar e aplicar as leis, definir e garantir a propriedade privada e exigir obediência incondicional dos governados, desde que respeite dois direitos naturais intransferíveis: o direito à vida e à paz, pois foi por eles que o soberano foi criado. O soberano detém a espada e a lei; os governados, a vida e a propriedade dos bens.

Para Rousseau, o soberano é o povo, entendido como vontade geral, pessoa moral coletiva livre e corpo político de cidadãos. Os indivíduos, pelo contrato, criaram-se a si mesmos como povo e é a este que transferem os direitos naturais para que sejam transformados em direitos civis. Assim sendo, o governante não é o soberano, mas o representante da soberania popular. Os indivíduos aceitam perder a liberdade civil; aceitam perder a posse natural para ganhar a individualidade civil, isto é, a cidadania. Enquanto criam a soberania e nela se fazem representar, são cidadãos. Enquanto se submetem às leis e à autoridade do governante que os representa chamam-se súditos. São, pois, cidadãos do Estado e súditos das leis.

A teoria liberal

No pensamento político de Hobbes e Rousseau, a propriedade privada não é um direito natural, mas civil. Em outras palavras, mesmo que no Estado de Natureza (em Hobbes) e no Estado de Sociedade (em Rousseau) os indivíduos se apossem de terras e bens, essa posse é o mesmo que nada, pois não existem leis para garanti-las. A propriedade privada é, portanto, um efeito do contrato social e um decreto do soberano. Essa teoria, porém, não era suficiente para a burguesia em ascensão.

De fato, embora o capitalismo estivesse em vias de consolidação e o poderio econômico da burguesia fosse inconteste, o regime político permanecia monárquico e o poderio político e o prestígio social da nobreza também permaneciam. Para enfrentá-los em igualdade de condições, a burguesia precisava de uma teoria que lhe desse legitimidade tão grande ou maior do que o sangue e a hereditariedade davam à realeza e à nobreza. Essa teoria será a da propriedade privada como direito natural e sua primeira formulação coerente será feita pelo filósofo inglês Locke, no final do século XVII e início do século XVIII.

Locke parte da definição do direito natural como direito à vida, à liberdade e aos bens necessários para a conservação de ambas. Esses bens são conseguidos pelo trabalho.

Como fazer do trabalho o legitimador da propriedade privada enquanto direito natural?

Deus, escreve Locke, é um artífice, um obreiro, arquiteto e engenheiro que fez uma obra: o mundo. Este, como obra do trabalhador divino, a ele pertence. É seu domínio e sua propriedade. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, deu-lhe o mundo para que nele reinasse e, ao expulsá-lo do Paraíso, não lhe retirou o domínio do mundo, mas lhe disse que o teria com o suor de seu rosto. Por todos esses motivos, Deus instituiu, no momento da criação do mundo e do homem, o direito à propriedade privada como fruto legítimo do trabalho. Por isso, de origem divina, ela é um direito natural.

O Estado existe a partir do contrato social. Tem as funções que Hobbes lhe atribui, mas sua principal finalidade é garantir o direito natural de propriedade.

Dessa maneira, a burguesia se vê inteiramente legitimada perante a realeza e a nobreza e, mais do que isso, surge como superior a elas, uma vez que o burguês acredita que é proprietário graças ao seu próprio trabalho, enquanto reis e nobres são parasitas da sociedade.

O burguês não se reconhece apenas como superior social e moralmente aos nobres, mas também como superior aos pobres. De fato, se Deus fez todos os homens iguais, se a todos deu a missão de trabalhar e a todos concedeu o direito à propriedade privada, então, os pobres, isto é, os trabalhadores que não conseguem tornar-se proprietários privados, são culpados por sua condição inferior. São pobres, não são proprietários e são obrigados a trabalhar para outros seja porque são perdulários, gastando o salário em vez de acumulá-lo para adquirir propriedades, ou são preguiçosos e não trabalham o suficiente para conseguir uma propriedade.

Se a função do Estado não é a de criar ou instituir a propriedade privada, mas de garanti-la e defendê-la contra a nobreza e os pobres, qual é o poder do soberano?

A teoria liberal, primeiro com Locke, depois com os realizadores da independência norte-americana e da Revolução Francesa, e finalmente, no século passado, com pensadores como Max Weber, dirão que a função do Estado é tríplice:

1. por meio das leis e do uso legal da violência (exército e polícia), garantir o direito natural de propriedade, sem interferir na vida econômica, pois, não tendo instituído a propriedade, o Estado não tem poder para nela interferir. Donde a idéia de liberalismo, isto é, o Estado deve respeitar a liberdade econômica dos proprietários privados, deixando que façam as regras e as normas das atividades econômicas;

2. visto que os proprietários privados são capazes de estabelecer as regras e as normas da vida econômica ou do mercado, entre o Estado e o indivíduo intercala-se uma esfera social, a sociedade civil, sobre a qual o Estado não tem poder instituinte, mas apenas a função de garantidor e de árbitro dos conflitos nela existentes. O Estado tem a função de arbitrar, por meio das leis e da força, os conflitos da sociedade civil;

3. o Estado tem o direito de legislar, permitir e proibir tudo quanto pertença à esfera da vida pública, mas não tem o direito de intervir sobre a consciência dos governados. O Estado deve garantir a liberdade de consciência, isto é, a liberdade de pensamento de todos os governados e só poderá exercer censura nos casos em que se emitam opiniões sediciosas que ponham em risco o próprio Estado.

Na Inglaterra, o liberalismo se consolida em 1688, com a chamada Revolução Gloriosa. No restante da Europa, será preciso aguardar a Revolução Francesa de 1789. Nos Estados Unidos, consolida-se em 1776, com a luta pela independência.

Liberalismo e fim do Antigo Regime

As idéias políticas liberais têm como pano de fundo a luta contra as monarquias absolutas por direito divino dos reis, derivadas da concepção teocrática do poder. O liberalismo consolida-se com os acontecimentos de 1789, na França, isto é, com a Revolução Francesa, que derrubou o Antigo Regime.

Antigo, em primeiro lugar, porque politicamente teocrático e absolutista. Antigo, em segundo lugar, porque socialmente fundado na idéia de hierarquia divina, natural e social e na organização feudal, baseada no pacto de submissão dos vassalos ou súditos ao senhor.

Com as idéias de direito natural dos indivíduos e de sociedade civil (relações entre indivíduos livres e iguais por natureza), quebra-se a idéia de hierarquia. Com a idéia de contrato social (passagem da idéia de pacto de submissão à de pacto social entre indivíduos livres e iguais) quebra-se a idéia da origem divina do poder e da justiça fundada nas virtudes do bom governante.

O término do Antigo Regime se consuma quando a teoria política consagra a propriedade privada como direito natural dos indivíduos, desfazendo a imagem do rei como marido da terra, senhor dos bens e riquezas do reino, decidindo segundo sua vontade e seu capricho quanto a impostos, tributos e taxas. A propriedade ou é individual e privada, ou é estatal e pública, jamais patrimônio pessoal do monarca. O poder tem a forma de um Estado republicano impessoal porque a decisão sobre impostos, tributos e taxas é tomada por um parlamento – o poder legislativo -, constituído pelos representantes dos proprietários privados.

As teorias políticas liberais afirmam, portanto, que o indivíduo é a origem e o destinatário do poder político, nascido de um contrato social voluntário, no qual os contratantes cedem poderes, mas não cedem sua individualidade (vida, liberdade e propriedade). O indivíduo é o cidadão.

Afirmam também a existência de uma esfera de relações sociais separadas da vida privada e da vida política, a sociedade civil organizada, onde proprietários privados e trabalhadores criam suas organizações de classes, realizam contratos, disputam interesses e posições, sem que o Estado possa aí intervir, a não ser que uma das partes lhe peça para arbitrar os conflitos ou que uma das partes aja de modo que pareça perigoso para a manutenção da própria sociedade.

Afirmam o caráter republicano do poder, isto é, o Estado é o poder público e nele os interesses dos proprietários devem estar representados por meio do parlamento e do poder judiciário, os representantes devendo ser eleitos por seus pares. Quanto ao poder executivo, em caso de monarquia, pode ser hereditário, mas o rei está submetido às leis como os demais súditos. Em caso de democracia, será eleito por voto censitário, isto é, são eleitores ou cidadãos plenos apenas os que possuírem uma certa renda ou riqueza.

O Estado, através da lei e da força, tem o poder para dominar – exigir obediência – e para reprimir – punir o que a lei defina como crime. Seu papel é a garantia da ordem pública, tal como definida pelos proprietários privados e seus representantes.

A cidadania liberal

O Estado liberal se apresenta como república representativa constituída de três poderes: o executivo (encarregado da administração dos negócios e serviços públicos), o legislativo (parlamento encarregado de instituir as leis) e o judiciário (magistraturas de profissionais do direito, encarregados de aplicar as leis). Possui um corpo de militares profissionais que formam as forças armadas – exército e polícia -, encarregadas da ordem interna e da defesa (ou ataque) externo. Possui também um corpo de servidores ou funcionários públicos, que formam a burocracia, encarregada de cumprir as decisões dos três poderes perante os cidadãos.

O Estado liberal julgava inconcebível que um não-proprietário pudesse ocupar um cargo de representante num dos três poderes. Ao afirmar que os cidadãos eram os homens livres e independentes, queriam dizer com isso que eram dependentes e não-livres os que não possuíssem propriedade privada. Estavam excluídos do poder político, portanto, os trabalhadores e as mulheres, isto é, a maioria da sociedade.

Lutas populares intensas, desde o século XVIII até nossos dias, forçaram o Estado liberal a tornar-se uma democracia representativa, ampliando a cidadania política. Com exceção dos Estados Unidos, onde os trabalhadores brancos foram considerados cidadãos desde o século XVIII, nos demais países a cidadania plena e o sufrágio universal só vieram a existir completamente no século XX, como conclusão de um longo processo em que a cidadania foi sendo concedida por etapas.

Não menos espantoso é o fato de que em duas das maiores potências mundiais, Inglaterra e França, as mulheres só alcançaram plena cidadania em 1946, após a Segunda Guerra Mundial. Pode-se avaliar como foi dura, penosa e lenta essa conquista popular, considerando-se que, por exemplo, os negros do sul dos Estados Unidos só se tornaram cidadãos nos anos 60 do século passado. Também é importante lembrar que em países da América Latina, sob a democracia liberal, os índios ficaram excluídos da cidadania e que os negros da África do Sul votaram pela primeira vez em 1994. As lutas indígenas, em nosso continente, e as africanas continuam até nossos dias[i].

A idéia de revolução

A política liberal foi o resultado de acontecimentos econômicos e sociais que impuseram mudanças na concepção do poder do Estado, considerado instituído pelo consentimento dos indivíduos através do contrato social. Tais acontecimentos ficaram conhecidos com o nome de revoluções burguesas, isto é, mudanças na estrutura econômica, na sociedade e na política, efetuadas por uma nova classe social, a burguesia.

O uso da palavra revolução para designar tais mudanças é curioso. De fato, essa palavra provém do vocabulário da astronomia, significando o movimento circular completo que um astro realiza ao voltar ao seu ponto de partida. Uma revolução se efetua quando o movimento total de um astro faz coincidirem seu ponto de partida e seu ponto de chegada. Revolução designa movimento circular cíclico, isto é, repetição contínua de um mesmo percurso.

Como entender que essa palavra tenha entrado para o vocabulário político significando mudanças e alterações profundas nas relações sociais e no poder? Como entender que, em vez de significar retorno circular e cíclico ao ponto de partida, signifique exatamente o contrário, isto é, percurso rumo ao tempo novo e à sociedade nova?

Para responder a essas perguntas precisamos examinar um pouco mais de perto as revoluções burguesas, isto é, a Revolução Inglesa de 1644, a Revolução Norte-Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789.

Embora em todas elas o resultado tenha sido o mesmo, qual seja, a subida e consolidação política da burguesia como classe dominante, nas três houve o que um historiador denominou de “revolução na revolução”, indicando com isso a existência de um movimento popular radical ou a face democrática e igualitária da revolução, derrotada pela revolução burguesa. Em outras palavras, nas três revoluções, a burguesia pretendeu e conseguiu derrotar a realeza e a nobreza, passou a dominar o Estado e julgou com isso terminada a tarefa das mudanças, enquanto as classes populares, que participaram daquela vitória, desejavam muito mais: desejavam instituir uma sociedade inteiramente nova, justa, livre e feliz.

Ora, as classes populares não possuíam teorias políticas de tipo filosófico e científico. Para explicar o mundo em que viviam e o mundo que desejavam dispunham de uma única fonte: a Bíblia. Através da religião, possuíam duas referências de justiça e felicidade: a imagem do Paraíso terrestre (no Antigo Testamento) e o Reino de Deus na Terra ou Nova Jerusalém (no Novo Testamento) que restauraria o Paraíso depois que Cristo viesse ao mundo pela segunda vez e, no fim dos tempos ou tempo do fim, derrotasse para sempre o Mal. As classes populares revolucionárias dispunham, portanto, de um imaginário messiânico e milenarista (milenarista porque o Reino de Deus na Terra duraria mil anos de felicidade, abundância e justiça).

Ao lutarem politicamente, as classes populares olhavam para o passado (o ponto de partida dos homens no Paraíso) e para o futuro (o ponto de chegada dos homens na Nova Jerusalém). Olhavam para o tempo futuro e novo – a sociedade dos justos na Terra -, que seria a restituição ou restauração do tempo passado original – o Paraíso. Porque o ponto de chegada e o ponto de partida do movimento político coincidiam com a existência da justiça e da felicidade, o futuro e o passado se encontravam, fechando o ciclo e o círculo da existência humana, graças à ação do presente. Por isso, designaram os acontecimentos de que eram os sujeitos e protagonistas com a palavra revolução.

Se compararmos os movimentos revolucionários dos séculos XVII e XVIII com a teoria política liberal, notaremos uma diferença importante entre eles.

De fato, as teorias liberais separam o Estado e a sociedade civil. O primeiro aparece como instância impessoal de dominação (impõe obediência), de estabelecimento e aplicação das leis, como garantidor da ordem através do uso legal da violência para punir todo o crime definido pelas leis, e como árbitro dos conflitos sociais. A sociedade civil, por seu turno, aparece como um conjunto de relações sociais diversificadas entre classes e grupos sociais, cujos interesses e direitos podem coincidir ou opor-se. Nela existem as relações econômicas de produção, distribuição, acumulação de riquezas e consumo de produtos que circulam através do mercado.

O centro da sociedade civil é a propriedade privada, que diferencia indivíduos, grupos e classes sociais, e o centro do Estado é a garantia dessa propriedade, sem contudo mesclar política e sociedade. O coração do liberalismo é a diferença e a distância entre Estado e sociedade.

Ora, as revoluções, e sobretudo a face popular das revoluções, operam exatamente com a indistinção entre Estado e sociedade, entre ação política e relações sociais. As revoluções pretendem derrubar o poder existente ou o Estado porque o percebem como responsável ou cúmplice das desigualdades e injustiças existentes na sociedade. Em outras palavras, a percepção de injustiças sociais leva às ações políticas. Uma revolução pode começar como luta social que desemboca na luta política contra o poder ou pode começar como luta política que desemboca na luta por uma outra sociedade.

Eis por que, em todas as revoluções burguesas, vemos sempre acontecer o mesmo processo: a burguesia estimula a participação popular, porque precisa que a sociedade toda lute contra o poder existente; conseguida a mudança política, com a passagem do poder da monarquia à república, a burguesia considera a revolução terminada; as classes populares, porém, a prosseguem, pois aspiram ao poder democrático e desejam mudanças sociais; a burguesia vitoriosa passa a reprimir as classes populares revolucionárias, desarma o povo que ela própria armara, prende, tortura e mata os chefes populares e encerra, pela força, o processo revolucionário, garantindo, com o liberalismo, a separação entre Estado e sociedade.

Significado político das revoluções

Uma revolução, seja ela burguesa ou popular, possui um significado político da mais alta importância, porque desvenda a estrutura e a organização da sociedade e do Estado. Ela evidencia:

● a divisão social e política, sob a forma de uma polarização entre um alto opressor e um baixo oprimido;

● a percepção do alto pelo baixo da sociedade como um poder que não é natural nem necessário, mas resultado de uma ação humana e, como tal, pode ser derrubado e reconstruído de outra maneira;

● a compreensão de que os agentes sociais são sujeitos políticos e, como tais, dotados de direitos. A consciência dos direitos faz com que os sujeitos sóciopolíticos exijam reconhecimento e garantia de seus direitos pela sociedade e pelo poder político. Eis por que toda revolução culmina numa declaração pública conhecida como Declaração Universal dos Direitos dos Cidadãos;

● pela via da declaração dos direitos, uma revolução repõe a relação entre poder político e justiça social, mas com uma novidade própria do mundo moderno, pois a justiça não depende mais da figura do bom governo do príncipe virtuoso, e sim de instituições públicas que satisfaçam à demanda dos cidadãos ao Estado. Cabe ao novo poder político criar instituições que possam satisfazer e garantir a luta revolucionária por direitos.

As revoluções sociais

Acabamos de ver que as revoluções modernas possuem duas faces: a face burguesa liberal (a revolução é política, visando à tomada do poder e à instituição do Estado como república e órgão separado da sociedade civil) e a face popular (a revolução é política e social, visando à criação de direitos e à instituição do poder democrático que garanta uma nova sociedade justa e feliz).

Vimos também que, nas revoluções modernas, a face popular é sufocada pela face liberal, embora esta última seja obrigada a introduzir e garantir alguns direitos políticos e sociais para o povo, de modo a conseguir manter a ordem e evitar a explosão contínua de revoltas populares.

A face popular vencida não desaparece. Ressurge periodicamente em lutas isoladas por melhores condições de vida, de trabalho, de salários e com reivindicações isoladas de participação política. Essa face popular tende a crescer e manifestar-se em novas revoluções (derrotadas) durante todo o século XIX, à medida que se desenvolve o capitalismo industrial e as classes populares se tornam uma classe social de perfil muito definido: os proletários ou trabalhadores industriais.

Correspondendo à emergência e à definição da classe trabalhadora proletária e à sua ação política em revoluções populares de caráter político-social, surgem novas teorias políticas: as várias teorias socialistas.

As teorias socialistas tomam o proletariado como sujeito político e histórico e procuram figurar uma nova sociedade e uma nova política na qual a exploração dos trabalhadores, a dominação política a que estão submetidos e as exclusões sociais e culturais a que são forçados deixem de existir. Porque seu sujeito político são os trabalhadores, essas teorias políticas tendem a figurar a sociedade futura como igualitária, feita de abundância, justiça e felicidade. Como percebem a cumplicidade entre o Estado e a classe economicamente dominante, julgam que a existência do primeiro se deve apenas às necessidades econômicas da burguesia e por isso afirmam que, na sociedade futura, quando não haverá divisão social de classes nem desigualdades, a política não dependerá do Estado. São, portanto, teorias antiestatais, que apostam na capacidade de autogoverno ou de autogestão da sociedade.



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[i] A vitória de Mandela, na África do Sul, resulta de longa e sangrenta luta contra o apartheid, isto é, a segregação e exclusão impostas pelos brancos colonizadores aos negros.


Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 8
O mundo da prática

Capítulo 10
A política contra a servidão voluntária

A tradição libertária

As teorias socialistas modernas são herdeiras da tradição libertária, isto é, das lutas sociais e políticas populares por liberdade e justiça contra a opressão dos poderosos.

Nessa tradição encontram-se as revoltas camponesas e dos artesãos do final da Idade Média, do início da Reforma Protestante e da Revolução Inglesa de 1644. Essas revoltas são conhecidas como milenaristas, pois, como vimos, as classes populares possuem como referencial para compreender e julgar a política as imagens bíblicas do Paraíso, da Nova Jerusalém e do tempo do fim, quando o Bem vencerá perpetuamente o Mal, instaurando o Reino dos Mil Anos de felicidade e justiça. Na Revolução Inglesa, os pobres tinham certeza de que chegara o tempo do fim e se aproximava o milênio. Viam os sinais do fim: fome, peste, guerras, eclipses, cometas, prodígios inexplicáveis, que anunciavam a vinda do Anti-Cristo e exigiam que fosse combatido pelos justos e bons.

Em geral, o Anti-Cristo era identificado à pessoa de um governante tirânico: papas, reis, imperadores. Contra ele, os pobres se reuniam em comunidades igualitárias, armavam-se e partiam para a luta, pois deveriam preparar o mundo para a chegada triunfal de Cristo, que venceria definitivamente o Anti-Cristo. A esperança milenarista sempre viu a luta política como conflagração cósmica entre a luz e a treva, o justo e o injusto, o bem e o mal.

Também na tradição libertária encontra-se a obra de um jovem filósofo francês, La Boétie, escrita no século XVI, depois da derrota popular contra os exércitos e fiscais do rei, que vinham cobrar um novo imposto sobre o sal. La Boétie indaga como é possível que burgos inteiros, cidades inteiras, nações inteiras se submetam à vontade de um só, em geral o mais covarde e temeroso de todos. De onde um só tira o poder para esmagar todos os outros?

Duas são as respostas. Na primeira, La Boétie mostra que não é por medo que obedecemos à vontade de um só, mas porque desejamos a tirania. Como explicar que o tirano, cujo corpo é igual ao nosso, tenha crescido tanto, com mil olhos e mil ouvidos para nos espionar, mil bocas para nos enganar, mil mãos para nos esganar, mil pés para nos pisotear? Quem lhe deu os olhos e os ouvidos dos espiões, as bocas dos magistrados, as mãos e os pés dos soldados? O próprio povo.

A sociedade é como uma imensa pirâmide de tiranetes que se esmagam uns aos outros: o corpo do tirano é formado pelos seis que o aconselham, pelos sessenta que protegem os seis, pelos seiscentos que defendem os sessenta, pelos seis mil que servem aos seiscentos e pelos seis milhões que obedecem aos seis mil, na esperança de conseguir o poder para mandar em outros. A primeira resposta nos diz que o poder de um só sobre todos foi dado ao tirano por nosso desejo de sermos tiranos também.

A segunda resposta, porém, vai mais fundo. La Boétie indaga: De onde vem o próprio desejo de tirania? Do desejo de ter bens e riquezas, do desejo de ser proprietário. Mas de onde vem esse desejo de ter, de posse? Do desprezo pela liberdade. Se desejássemos verdadeiramente a liberdade, jamais a trocaríamos pela posse de bens, que nos escravizam aos outros e nos submetem à vontade dos mais fortes e tiranos.

Ao trocar o direito à liberdade pelo desejo de posses, aceitamos algo terrível: a servidão voluntária. Não somos obrigados a obedecer ao tirano e aos seus representantes, mas desejamos voluntariamente servi-los porque deles esperamos bens e a garantia de nossas posses. Usamos nossa liberdade para nos tornarmos servos.

Como derrubar um tirano e reconquistar a liberdade?

A resposta de La Boétie é espantosa: basta não dar ao tirano o que ele pede e exige. Não é preciso tomar das armas e fazer-lhe a guerra. Basta que não seja dado o que este deseja e será derrubado. Que quer ele? Nossa consciência e nossa liberdade, sob o desejo de posses e de mando. Se não trocarmos nossa consciência pela posse de bens e se não trocarmos nossa liberdade pelo desejo de mando, nada daremos ao tirano e, sem poder, ele cairá como um ídolo de barro.

Das lutas populares e das tradições libertárias nascem as teorias socialistas modernas.

As teorias socialistas

São três as principais correntes socialistas modernas. Vejamos, a seguir, o que cada uma defende.

Socialismo utópico

Essa corrente socialista vê a classe trabalhadora como despossuída, oprimida e geradora da riqueza social sem dela desfrutar. Para ela, os teóricos imaginam uma nova sociedade onde não existam a propriedade privada, o lucro dos capitalistas, a exploração do trabalho e a desigualdade econômica, social e política. Imaginam novas cidades, organizadas em grandes cooperativas geridas pelos trabalhadores e nas quais haja escola para todos, liberdade de pensamento e de expressão, igualdade de direitos sociais (moradia, alimentação, transporte, saúde), abundância e felicidade.

As cidades são comunidades de pessoas livres e iguais que se autogovernam. Por serem cidades perfeitas, que não existem em parte alguma, mas que serão criadas pela vontade livre dos despossuídos, diz-se que são cidades utópicas e as teorias que as criaram são chamadas de utopias[i]. Os principais socialistas utópicos foram os franceses Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Louis Blanc e Banqui, e o inglês Owen.

Anarquismo

O principal teórico dessa corrente socialista foi o russo Bakunin, inspirado nas idéias socialistas de Proudhon. Seu ponto de partida é a crítica do individualismo burguês e do Estado liberal, considerado autoritário e antinatural. Como Rousseau, os anarquistas acreditam na liberdade natural e na bondade natural dos seres humanos e em sua capacidade para viver felizes em comunidades, atribuindo a origem da sociedade (os indivíduos isolados e em luta) à propriedade privada e à exploração do trabalho, e a origem do Estado ao poder dos mais fortes (os proprietários privados) sobre os fracos (os trabalhadores).

Contra o artificialismo da sociedade e do Estado, propõem o retorno à vida em comunidades autogovernadas, sem a menor hierarquia e sem nenhuma autoridade com poder de mando e direção. Afirmam dois grandes valores: a liberdade e a responsabilidade, em cujo nome propõem a descentralização social e política, a participação direta de todos nas decisões da comunidade, a formação de organizações de bairro, de fábrica, de educação, moradia, saúde, transporte, etc. Propõem também que essas organizações comunitárias participativas formem federações nacionais e internacionais para a tomada de decisões globais, evitando, porém, a forma parlamentar de representação e garantindo a democracia direta.

As comunidades e as organizações comunitárias enviam delegados às federações. Os delegados são eleitos para um mandato referente exclusivamente ao assunto que será tratado pela assembléia da federação; terminada a assembléia, o mandato também termina, de sorte que não há representantes permanentes. Visto que o delegado possui um mandato para expor e defender perante a federação as opiniões e decisões de sua comunidade, se não cumprir o que lhe foi delegado, seu mandato será revogado e um outro delegado eleito.

Como se observa, os anarquistas procuram impedir o surgimento de aparelhos de poder que conduzam à formação do Estado. Recusam, por isso, a existência de exércitos profissionais e defendem a tese do povo armado ou das milícias populares, que se formam numa emergência e se dissolvem tão logo o problema tenha sido resolvido. Consideram o Estado nacional obra do autoritarismo e da opressão capitalista e, por isso, contra ele, defendem o internacionalismo sem fronteiras, pois “só o capital tem pátria” e os trabalhadores são “cidadãos do mundo”.

Os anarquistas são conhecidos como libertários, pois lutam contra todas as formas de autoridade e de autoritarismo. Além de Bakunin, outros importantes anarquistas foram: Kropotkin, Ema Goldman, Tolstoi, Malatesta e George Orwell, autor do livro 1984[ii].

Comunismo ou socialismo científico

Crítico não só do Estado liberal, mas também do socialismo utópico e do anarquismo. Encontra-se desenvolvido nas obras de Marx e Engels.

A perspectiva marxista

Com a obra de Marx, estamos colocados diante de um acontecimento comparável apenas ao de Maquiavel. Embora suas teorias sejam completamente diferentes, pois respondem a experiências históricas e a problemas diferentes, ambos representam uma mudança decisiva no modo de conceber a política e a relação entre sociedade e poder. Maquiavel desmistificou a teologia política e o republicanismo italiano, que simplesmente pretendia imitar gregos e romanos. Marx desmistificou a política liberal.

Marx parte da crítica da economia política.

A expressão economia política é curiosa. Com efeito, a palavra economia vem do grego, oikonomia, composta de dois vocábulos, oikos e nomos. Oikos é a casa ou família, entendida como unidade de produção (agricultura, pastoreio, edificações, artesanato, trocas de bens entre famílias ou trocas de bens por moeda, etc.). Nomos significa regra, acordo convencionado entre seres humanos e por eles respeitado nas relações sociais. Oikonomia é, portanto, o conjunto de normas de administração da propriedade patrimonial ou privada, dirigida pelo chefe da família, o despotes.

Vimos que os gregos inventaram a política porque separaram o espaço privado – a oikonomia – e o espaço público das leis e do direito – a polis. Como, então, falar em “economia política”? Os dois termos não se excluem reciprocamente?

A crítica da economia política consiste, justamente, em mostrar que, apesar das afirmações greco-romanas e liberais de separação entre a esfera privada da propriedade e a esfera pública do poder, a política jamais conseguiu realizar a diferença entre ambas. Nem poderia. O poder político sempre foi a maneira legal e jurídica pela qual a classe economicamente dominante de uma sociedade manteve seu domínio. O aparato legal e jurídico apenas dissimula o essencial: que o poder político existe como poderio dos economicamente poderosos, para servir seus interesses e privilégios e garantir-lhes a dominação social. Divididas entre proprietários e não-proprietários (trabalhadores livres, escravos, servos), as sociedades jamais foram comunidades de iguais e jamais permitiram que o poder político fosse compartilhado com os não-proprietários.

Por que a expressão economia política tornou-se possível na modernidade e, doravante, visível? Porque a idéia moderna liberal de sociedade civil tornou explícita a significação da economia política, ainda que a ideologia liberal exista para esconder tal fato.

De fato, a economia política surge como ciência no final do século XVIII e início do século XIX, na França e na Inglaterra, para combater as limitações que o Antigo Regime impunha ao capitalismo. As restrições econômicas próprias da sociedade feudal e o controle da atividade mercantil pelo Estado monárquico eram vistos como prejudiciais ao desenvolvimento da “riqueza das nações”. Baseando-se nos mesmos princípios que criaram o liberalismo político, a economia política é elaborada como liberalismo econômico.

Diferentemente dos gregos, que definiram o homem como animal político, e diferentemente dos medievais, que definiram o homem como ser sociável, a economia política define o homem como indivíduo que busca a satisfação de suas necessidades, consumindo o que a Natureza lhe oferece ou trabalhando para obter riquezas e bem-estar. Por ser mais vantajosa aos indivíduos a vida em comum, pactuam para criar a sociedade e o Estado.

As idéias de Estado, de Natureza e de direito natural conduziram a duas noções essenciais à economia política: a primeira é a noção de ordem natural racional, que garante a todos os indivíduos a satisfação de suas necessidades e seu bem-estar; a segunda é a noção de que, seja por bondade natural, seja por egoísmo, os homens agem em seu próprio benefício e interesse e, assim fazendo, contribuem para o bem coletivo ou social. A propriedade privada é natural e útil socialmente, além de legítima moralmente, porque estimula o trabalho e combate o vício da preguiça.

A economia política buscará as leis dos fenômenos econômicos na natureza humana e os efeitos das causas econômicas sobre a vida social. Visto que a ordem natural é racional e que os seres humanos possuem liberdade natural, a economia política deverá garantir que a racionalidade natural e a liberdade humana se realizem por si mesmas, sem entraves e sem limites.

Para alguns economistas políticos, como Adam Smith, a concorrência (ou lei econômica da oferta e da procura) é responsável pela riqueza social e pela harmonia entre interesse privado e interesse coletivo. Para outros, como David Ricardo, as leis econômicas revelam antagonismos entre os vários interesses dos grupos sociais. Assim, por exemplo, a diferença entre o preço das mercadorias e os salários indica uma oposição de interesses na sociedade, de modo que a concorrência exprime esses conflitos sociais. Em ambos os casos, porém, a economia se realiza como sociedade civil capaz de se autoregular, sem que o Estado deva interferir na sua liberdade. Donde o liberalismo econômico fundando o liberalismo político.

Marx indaga: O que é a sociedade civil? E responde: Não é a manifestação de uma ordem natural racional nem o aglomerado conflitante de indivíduos, famílias, grupos e corporações, cujos interesses antagônicos serão conciliados pelo contrato social, que instituiria a ação reguladora e ordenadora do Estado, expressão do interesse e da vontade gerais. A sociedade civil é o sistema de relações sociais que organiza a produção econômica (agricultura, indústria e comércio), realizando-se através de instituições sociais encarregadas de reproduzi-lo (família, igrejas, escolas, polícia, partidos políticos, meios de comunicação, etc.). É o espaço onde as relações sociais e suas formas econômicas e institucionais são pensadas, interpretadas e representadas por um conjunto de idéias morais, religiosas, jurídicas, pedagógicas, artísticas, científico-filosóficas e políticas.

A sociedade civil é o processo de constituição e reposição das condições materiais da produção econômica pelas quais são engendradas as classes sociais: os proprietários privados dos meios de produção e os trabalhadores ou não-proprietários, que vendem sua força de trabalho como mercadoria submetida à lei da oferta e da procura no mercado de mão-de-obra. Essas classes sociais são antagônicas e seus conflitos revelam uma contradição profunda entre os interesses irreconciliáveis de cada uma delas, isto é, a sociedade civil se realiza como luta de classes.

Sem dúvida, os liberais estão certos quando afirmam que a sociedade civil, por ser esfera econômica, é a esfera dos interesses privados, pois é exatamente isso o que ela é. O que é, porém, o Estado?

Longe de diferenciar-se da sociedade civil e de separar-se dela, longe de ser a expressão da vontade geral e do interesse geral, o Estado é a expressão legal – jurídica e policial – dos interesses de uma classe social particular, a classe dos proprietários privados dos meios de produção ou classe dominante. E o Estado não é uma imposição divina aos homens, nem é o resultado de um pacto ou contrato social, mas é a maneira pela qual a classe dominante de uma época e de uma sociedade determinadas garante seus interesses e sua dominação sobre o todo social.

O Estado é a expressão política da luta econômico-social das classes, amortecida pelo aparato da ordem (jurídica) e da força pública (policial e militar). Não é, mas aparece como um poder público distante e separado da sociedade civil. Não por acaso, o liberalismo define o Estado como garantidor do direito de propriedade privada e, não por acaso, reduz a cidadania aos direitos dos proprietários privados (vimos que a ampliação da cidadania foi fruto de lutas populares contra as idéias e práticas liberais).

A economia, portanto, jamais deixou de ser política. Simplesmente, no capitalismo, o vínculo interno e necessário entre economia e política tornou-se evidente.

No entanto, se perguntarmos às pessoas que vivem no Estado liberal capitalista se, para elas, é evidente tal vínculo, certamente dirão que não. Por que o vínculo interno entre o poder econômico e o poder político permanece invisível aos olhos da maioria?

Marx faz duas indagações:

1. Como surgiu o Estado? Isto é, como os homens passaram da submissão ao poder pessoal visível de um senhor à obediência ao poder impessoal invisível de um Estado?

2. Por que o vínculo entre o poder econômico e o poder político não é percebido pela sociedade e, sobretudo, por que não é percebido pelos que não têm poder econômico nem político?

Antecedentes da teoria marxista

Antes de examinarmos as respostas de Marx a essas indagações, devemos lembrar um conjunto de idéias e de fatos, existentes quando ele iniciou seu trabalho teórico.

Do ponto de vista dos fatos, estamos na era do desenvolvimento do capitalismo industrial, com a ampliação da capacidade tecnológica de domínio da Natureza pelo trabalho e pela técnica. Essa ampliação aumenta também o campo de ação do capital, que passa a absorver contingentes cada vez maiores de pessoas no mercado da mão-de-obra e do consumo, rumando para o mercado capitalista mundial.

A burguesia se organiza através do Estado liberal, enquanto os trabalhadores industriais ou proletários se organizam em associações profissionais e sindicatos para as lutas econômicas (salários, jornada de trabalho), sociais (condições de vida) e políticas (reivindicação de cidadania). Greves, revoltas e revoluções eclodem em toda a parte, as mais importantes vindo a ocorrer na França em 1830, 1848 e 1871. No Brasil, em 1858, eclode a primeira greve dos trabalhadores e, em 1878, a primeira greve dos trabalhadores do campo, em Amparo (Estado de São Paulo).

Simultaneamente, consolida-se (em alguns países) ou inicia-se (em outros países) o Estado nacional unificado e centralizado, definido pela unidade territorial e pela identidade de língua, religião, raça e costumes. O capital precisa de suportes territoriais e por isso leva à constituição das nações, forçando, pelas guerras e pelo direito internacional, a delimitação e a garantia de fronteiras e, pelo aparato jurídico, policial e escolar, a unidade de língua, religião e costumes. Em suma, inventa-se a pátria ou nação, sob a forma de Estado nacional. Como se observa, a nação não é natural, nem existe desde sempre, mas foi inventada pelo capitalismo, no século XIX.

Do ponto de vista das idéias, além das teorias liberais e socialistas e da economia política, Hegel propõe uma filosofia política, a filosofia do direito.

Hegel explica a gênese do Estado moderno sem recorrer à teoria do direito natural e do contrato social. O Estado surge como superação nacional das limitações que bloqueavam o desenvolvimento do espírito humano: o isolamento dos indivíduos na família e as lutas dos interesses privados na sociedade civil. O Estado absorve e transforma a família e a sociedade civil numa totalidade racional, mais alta e perfeita, que exprime o interesse e a vontade gerais. Por isso, é a realização mais importante – e a última – da razão na História, uma vez que supera os particularismos numa unidade universal, que, pelo direito, garante a ordem, a paz, a moralidade, a liberdade e a perfeição do espírito humano.

A História é a passagem da família à sociedade civil e desta ao Estado, término do processo histórico. Esse processo é concebido como realização da Cultura, isto é, da diferença e da separação entre Natureza e Espírito e como absorção da primeira pelo segundo. O processo histórico é desenvolvimento da consciência, que se torna cada vez mais consciente de si através das obras espirituais da Cultura, isto é, das idéias que se materializam em instituições sociais, religiosas, artísticas, científico-filosóficas e políticas. O Estado é a síntese final da criação racional ou espiritual, expressão mais alta da Idéia ou do Espírito.

Liberalismo político, liberalismo econômico ou economia política e idealismo político hegeliano formam o pano de fundo do pensamento de Marx, voltado para a compreensão do capitalismo e das lutas proletárias.

Contra o liberalismo político, Marx mostrará que a propriedade privada não é um direito natural e o Estado não é resultado de um contrato social. Contra a economia política, mostrará que a economia não é expressão de uma ordem natural racional. Contra Hegel, mostrará que o Estado não é a Idéia ou o Espírito encarnados no real e que a História não é o movimento da consciência e suas idéias.

Gênese da sociedade e do Estado

Dissemos acima que Marx indaga como os homens passaram da submissão ao poder pessoal de um senhor à obediência ao poder impessoal do Estado. Para responder a essa questão, é preciso desvendar a gênese do Estado.

Os seres humanos, escrevem Marx e Engels, distinguem-se dos animais não porque sejam dotados de consciência – animais racionais -, nem porque sejam naturalmente sociáveis e políticos – animais políticos -, mas porque são capazes de produzir as condições de sua existência material e intelectual. Os seres humanos são produtores: são o que produzem e são como produzem. A produção das condições materiais e intelectuais da existência não são escolhidas livremente pelos seres humanos, mas estão dadas objetivamente, independentemente de nossa vontade. Eis porque Marx diz que os homens fazem sua própria História, mas não a fazem em condições escolhidas por eles. São historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas.

A produção material e intelectual da existência humana depende de condições naturais (as do meio ambiente e as biológicas da espécie humana) e da procriação. Esta não é apenas um dado biológico (a diferença sexual necessária para a reprodução), mas já é social, pois decorre da maneira como se dá o intercâmbio e a cooperação entre os humanos e do modo como é simbolizada psicológica e culturalmente a diferença dos sexos. Por seu turno, a maneira como os humanos interpretam e realizam a diferença sexual determina o modo como farão a divisão social do trabalho, distinguindo trabalhos masculinos, femininos, infantis e de velhice.

A produção e a reprodução das condições de existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição da família) e do modo de apropriação da Natureza (a propriedade).

Esse conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e o sistema das formas produtivas que a regulam, segundo a divisão social do trabalho. Essa divisão, que começa na família, com a diferença sexual das tarefas, prossegue na distinção entre agricultura e pastoreio, entre ambas e o comércio, conduzindo à separação entre o campo e a cidade. Em cada uma das distinções operam novas divisões sociais do trabalho.

A divisão social do trabalho não é uma simples divisão de tarefas, mas a manifestação da existência da propriedade, ou seja, a separação entre as condições e os instrumentos do trabalho e o próprio trabalho, incidindo, a seguir, sobre a forma de distribuição dos produtos do trabalho. A propriedade introduz a existência dos meios de produção (condições e instrumentos de trabalho) como algo diferente das forças produtivas (trabalho).

Analisando as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas, é possível perceber a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades de sociedade.

A propriedade começa como propriedade tribal e a sociedade tem a forma de uma comunidade baseada na família (a comunidade é vista como a família ampliada à qual pertencem todos os membros do grupo). Nela prevalece a hierarquia definida por tarefas, funções, poderes e consumo. Essa forma da propriedade se transforma numa outra, a propriedade estatal, ou seja, propriedade do Estado, cujo dirigente determina o modo de relações dos sujeitos com ela: em certos casos (como na Índia, na China, na Pérsia) o Estado é o proprietário único e permite as atividades econômicas mediante pagamento de tributos, impostos e taxas; em outros casos (Grécia, Roma), o Estado cede, mediante certas regras, a propriedade às grandes famílias, que se tornam proprietárias privadas.

A sociedade se divide, agora, entre senhores e escravos. Nos grandes impérios orientais, os senhores se ocupam da guerra e da religião; na Grécia e em Roma, tornam-se cidadãos e ocupam-se da política, além de possuírem privilégios militares e religiosos; vivem nas cidades e em luta permanente com os que permaneceram no campo, bem como com os homens livres que trabalham nas atividades urbanas (artesanato e comércio) e com os escravos (do campo e da cidade).

A terceira forma de propriedade é a feudal, apresentando-se como propriedade privada da terra pelos senhores e propriedade dos instrumentos de trabalho pelos artesãos livres, membros das corporações dos burgos. A terra é trabalhada por servos da gleba e a sociedade se estrutura pela divisão entre nobreza fundiária e servos (no campo) e artesãos livres e aprendizes (na cidade). Entre elas surge uma figura intermediária: o comerciante. As lutas entre comerciantes e nobres, o desenvolvimento dos burgos, do artesanato e da atividade comercial conduzem à mudança que conhecemos: a propriedade privada capitalista.

Essa nova forma de propriedade possui características inéditas e é uma verdadeira revolução econômica, porque realiza a separação integral entre proprietários dos meios de produção e forças produtivas, isto é, entre as condições e os instrumentos de trabalho e o próprio trabalho. Os proprietários privados possuem meios, condições e instrumentos do trabalho, possuem o controle da distribuição e do consumo dos produtos. No outro pólo social, encontram-se os trabalhadores como massa de assalariados inteiramente expropriada dos meios de produção, possuindo apenas a força do trabalho, colocada à disposição dos proprietários dos meios de produção, no mercado de compra e venda da mão-de-obra.

Essas diferentes formas da propriedade dos meios de produção e das relações com as forças produtivas ou de determinações sociais decorrentes da divisão social do trabalho constituem os modos de produção.

Marx e Engels observaram que, a cada modo de produção, a consciência dos seres humanos se transforma. Descobriram que essas transformações constituem a maneira como, em cada época, a consciência interpreta, compreende e representa para si mesma o que se passa nas condições materiais de produção e reprodução da existência. Por esse motivo, afirmaram que, ao contrário do que se pensa, não são as idéias humanas que movem a História, mas são as condições históricas que produzem as idéias.

Na obra Contribuição à crítica da economia política, Marx escreve:

O conjunto das relações de produção (que corresponde ao grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais) constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência.

É por afirmar que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho, que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações naquelas condições materiais e naquela divisão do trabalho, e que a consciência humana é determinada a pensar as idéias que pensa por causa das condições materiais instituídas pela sociedade, que o pensamento de Marx e Engels é chamado de materialismo histórico.

Materialismo porque somos o que as condições materiais (as relações sociais de produção) nos determinam a ser e a pensar[iii]. Histórico porque a sociedade e a política não surgem de decretos divinos nem nascem da ordem natural, mas dependem da ação concreta dos seres humanos no tempo.

A História não é um progresso linear e contínuo, uma seqüência de causas e efeitos, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção (a forma da propriedade) e as forças produtivas (o trabalho, seus instrumentos, as técnicas). A luta de classes exprime tais contradições e é o motor da História. Por afirmar que o processo histórico é movido por contradições sociais, o materialismo histórico é dialético[iv].

As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade.

Qual a gênese do Estado? Conflitos entre proprietários privados dos meios de produção e contradições entre eles e os não-proprietários (escravos, servos, trabalhadores livres). Os conflitos entre proprietários e as contradições entre proprietários e não-proprietários aparecem para a consciência social sob a forma de conflitos e contradições entre interesses particulares e o interesse geral. Aparecem dessa maneira, mas não são realmente como aparecem. Em outras palavras, onde há propriedade privada, há interesse privado e não pode haver interesse coletivo ou geral.

Os proprietários dos meios de produção podem ter interesses comuns, pois necessitam do intercâmbio e da cooperação para manter e fazer crescer a propriedade de cada um. Assim, embora estejam em concorrência e competição, precisam estabelecer certas regras pelas quais não se destruam reciprocamente nem às suas propriedades.

Sabem também que não poderão resolver as contradições com os não-proprietários e que estes podem, por revoltas e revoluções populares, destruir a propriedade privada. É preciso, portanto, que os interesses comuns entre os proprietários dos meios de produção e a força para dominar os não-proprietários sejam estabelecidos de maneira tal que pareçam corretos, legítimos e válidos para todos. Para isso, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente.

No caso do poder despótico, a legitimação é feita pela divinização do senhor: o detentor do poder (um indivíduo, uma família ou um grupo de famílias) apresenta-se como filho de um humano e de uma divindade, isto é, o nascimento justifica o poderio. No caso do poder teocrático, a legitimação é feita pela sacralização do governante: o detentor do poder o recebe diretamente de Deus. No caso das repúblicas (democracia grega, o senado e o povo romano), a legitimação é feita pela instituição do direito e das leis que definem quem pode ser cidadão e participar do governo.

Nos três casos, a divisão social aparece como hierarquia divina e/ou natural, que justifica a exclusão dos não-proprietários do poder e sobretudo estabelece princípios (divinos ou naturais) para a submissão e a obediência, transformadas em obrigações.

No caso do Estado moderno, como vimos, as idéias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil fundam o poder político na vontade dos proprietários dos meios de produção, que se apresentam como indivíduos livres e iguais que transferem seus direitos naturais ao poder político, instituindo a autoridade do Estado e das leis.

Eis por que o Estado precisa aparecer como expressão do interesse geral e não como senhorio particular de alguns poderosos. Os não-proprietários podem recusar, como fizeram inúmeras vezes na História, o poder pessoal visível de um senhor, mas não o fazem quando se trata de um poder distante, separado, invisível e impessoal como o do Estado. Julgando que este se encontra a serviço do bem comum, da justiça, da ordem, da lei, da paz e da segurança, aceitam a dominação, pois não a percebem como tal.

Resta a segunda indagação de Marx, qual seja, por que os sujeitos sociais não percebem o vínculo entre o poder econômico e o poder político?

A ideologia

Quando citamos o texto da Contribuição à crítica da economia política, vimos que Marx afirma que a consciência humana é sempre social e histórica, isto é, determinada pelas condições concretas de nossa existência.

Isso não significa, porém, que nossas idéias representem a realidade tal como esta é em si mesma. Se assim fosse, seria incompreensível que os seres humanos, conhecendo as causas da exploração, da dominação, da miséria e da injustiça nada fizessem contra elas. Nossas idéias, historicamente determinadas, têm a peculiaridade de nascer a partir de nossa experiência social direta. A marca da experiência social é oferecer-se como uma explicação da aparência das coisas como se esta fosse a essência das próprias coisas.

Não só isso. As aparências – ou o aparecer social à consciência – são aparências justamente porque nos oferecem o mundo de cabeça para baixo: o que é causa parece ser efeito, o que é efeito parece ser causa. Isso não se dá apenas no plano da consciência individual, mas sobretudo no da consciência social, isto é, no conjunto de idéias e explicações que uma sociedade oferece sobre si mesma.

Feuerbach, como vimos[v], estudara esse fenômeno na religião, designando-o com o conceito de alienação. Marx interessa-se por esse fenômeno porque o percebeu em outras esferas da vida social, por exemplo, na política, que, como analisamos há pouco, leva os sujeitos sociais a aceitarem a dominação estatal porque não reconhecem quem são os verdadeiros criadores do Estado.

Ele o observou também na esfera da economia: no capitalismo, os trabalhadores produzem todos os objetos existentes no mercado, todas as mercadorias; após havê-las produzido, as entregam aos proprietários dos meios de produção, mediante um salário; quando vão ao mercado não conseguem comprar essas mercadorias. Olham os preços, contam o dinheiro e voltam para casa de mãos vazias, como se o preço das mercadorias existisse por si mesmo e como se elas estivessem à venda porque surgiram do nada e alguém as decidiu vender. Em outras palavras, os trabalhadores não só não se reconhecem como autores ou produtores das mercadorias, mas ainda acreditam que elas valem o preço que custam e que não podem tê-las porque valem mais do que eles. Alienaram nos objetos seu próprio trabalho e não se reconhecem como produtores da riqueza e das coisas.

A inversão entre causa e efeito, princípio e conseqüência, condição e condicionado leva à produção de imagens e idéias que pretendem representar a realidade. As imagens formam um imaginário social invertido – um conjunto de representações sobre os seres humanos e suas relações, sobre as coisas, sobre o bem e o mal, o justo e o injusto, os bons e os maus costumes, etc. Tomadas como idéias, essas imagens ou esse imaginário social constituem a ideologia.

A ideologia é um fenômeno histórico-social decorrente do modo de produção econômico.

À medida que, numa formação social, uma forma determinada da divisão social se estabiliza, se fixa e se repete, cada indivíduo passa a ter uma atividade determinada e exclusiva, que lhe é atribuída pelo conjunto das relações sociais, pelo estágio das forças produtivas e pela forma da propriedade. Cada um, por causa da fixidez e da repetição de seu lugar e de sua atividade, tende a considerá-los naturais (por exemplo, quando alguém julga que faz o que faz porque tem talento ou vocação natural para isso; quando alguém julga que, por natureza, os negros foram feitos para serem escravos; quando alguém julga que, por natureza, as mulheres foram feitas para a maternidade e o trabalho doméstico).

A naturalização surge sob a forma de idéias que afirmam que as coisas são como são porque é natural que assim sejam. As relações sociais passam, portanto, a serem vistas como naturais, existentes em si e por si, e não como resultados da ação humana. A naturalização é maneira pela qual as idéias produzem alienação social, isto é, a sociedade surge como uma força natural estranha e poderosa, que faz com que tudo seja necessariamente como é. Senhores por natureza, escravos por natureza, cidadãos por natureza, proprietários por natureza, assalariados por natureza, etc.

A divisão social do trabalho, iniciada na família, prossegue na sociedade e, à medida que esta se torna mais complexa, leva a uma divisão entre dois tipos fundamentais de trabalho: o trabalho material de produção de coisas e o trabalho intelectual de produção de idéias. No início, essa segunda forma de trabalho social é privilégio dos sacerdotes; depois, torna-se função de professores e escritores, artistas e cientistas, pensadores e filósofos.

Os que produzem idéias separam-se dos que produzem coisas, formando um grupo à parte. Pouco a pouco, à medida que vão ficando cada vez mais distantes e separados dos trabalhadores materiais, os que pensam começam a acreditar que a consciência e o pensamento estão, em si e por si mesmos, separados das coisas materiais, existindo em si e por si mesmos. Passam a acreditar na independência entre a consciência e o mundo material, entre o pensamento e as coisas produzidas socialmente. Conferem autonomia à consciência e às idéias e, finalmente, julgam que as idéias não só explicam a realidade, mas produzem o real. Surge a ideologia como crença na autonomia das idéias e na capacidade de as idéias criarem a realidade.

Ora, o grupo dos que pensam – sacerdotes, professores, artistas, filósofos, cientistas – não nasceu do nada. Nasceu não só da divisão social do trabalho, mas também de uma divisão no interior da classe dos proprietários ou classe dominante de uma sociedade. Como conseqüência, o grupo pensante (os intelectuais) pensa com as idéias dos dominantes; julga, porém, que tais idéias são verdadeiras em si mesmas e transformam idéias de uma classe social determinada em idéias universais e necessárias, válidas para a sociedade inteira.

Como o grupo pensante domina a consciência social, tem o poder de transmitir as idéias dominantes para toda a sociedade, através da religião, das artes, da escola, da ciência, da filosofia, dos costumes, das leis e do direito, moldando a consciência de todas as classes sociais e uniformizando o pensamento de todas as classes.

Os ideólogos são membros da classe dominante e das classes aliadas a ela, que, como intelectuais, sistematizam as imagens e as idéias sociais da classe dominante em representações coletivas, gerais e universais. Essas imagens e idéias não exprimem a realidade social, mas representam a aparência social do ponto de vista dos dominantes. São consideradas realidades autônomas que produzem a realidade material ou social. São imagens e idéias postas como universais abstratos, uma vez que, concretamente, não correspondem à realidade social, dividida em classes sociais antagônicas. Assim, por exemplo, existem na sociedade, concretamente, capitalistas e trabalhadores, mas na ideologia aparece abstratamente o Homem.

A ideologia torna-se propriamente ideologia quando não aparece sob a forma do mito, da religião e da teologia. Com efeito, nestes, a explicação sobre a origem dos seres humanos, da sociedade e do poder político encontra a causa fora e antes dos próprios humanos e de sua ação, localizando a causa originária nas divindades. A ideologia propriamente dita surge quando, no lugar das divindades, encontramos as idéias: o Homem, a Pátria, a Família, a Escola, o Progresso, a Ciência, o Estado, o Bem, o Justo, etc.

Com isso, podemos dizer que a ideologia é um fenômeno moderno, substituindo o papel que, antes dela, tinham os mitos e as teologias. Com a ideologia, a explicação sobre a origem dos homens, da sociedade e da política encontra-se nas ações humanas, entendidas como manifestação da consciência ou das idéias. Assim, por exemplo, julgar que o Estado se origina das idéias de Estado de Natureza, direito natural, contrato social e direito civil é supor que a consciência humana, independentemente das condições históricas materiais, pensou nessas idéias, julgou-as corretas e passou a agir por elas, criando a realidade designada e representada por elas.

Que faz a ideologia? Oferece a uma sociedade dividida em classes sociais antagônicas, e que vivem na forma da luta de classes, uma imagem que permita a unificação e a identificação social – uma língua, uma religião, uma raça, uma nação, uma pátria, um Estado, uma humanidade, mesmos costumes. Assim, a função primordial da ideologia é ocultar a origem da sociedade (relações de produção como relações entre meios de produção e forças produtivas sob a divisão social do trabalho), dissimular a presença da luta de classes (domínio e exploração dos não-proprietários pelos proprietários privados dos meios de produção), negar as desigualdades sociais (são imaginadas como se fossem conseqüência de talentos diferentes, da preguiça ou da disciplina laboriosa) e oferecer a imagem ilusória da comunidade (o Estado) originada do contrato social entre homens livres e iguais. A ideologia é a lógica da dominação social e política.

Porque nascemos e somos criados com essas idéias e nesse imaginário social, não percebemos a verdadeira natureza de classe do Estado. A resposta à segunda pergunta de Marx, qual seja, por que a sociedade não percebe o vínculo interno entre poder econômico e poder político, pode ser respondida agora: por causa da ideologia.

Práxis e revolução

Quando estudamos a ética, vimos Aristóteles estabelecer uma distinção que foi mantida no pensamento ocidental: a diferença entre poiesis, ação fabricadora (o trabalho e as técnicas), e praxis (a ação livre do agente moral e do sujeito político). Vimos também que Aristóteles valorizava muito mais a praxis do que a poiesis, o que é compreensível. De fato, a sociedade grega, onde vivia Aristóteles, era escravista, desvalorizando o trabalho como atividade inferior, se comparada à ação livre do cidadão, isto é, dos proprietários (de terra, do artesanato e do comércio). Liberdade, diziam gregos e romanos, é não precisar ocupar-se com as atividades de sobrevivência, mas dispor de ócio para cuidar da coisa pública.

O desprezo pelo trabalho aparece em vários sintomas significativos: não há, na língua grega, uma palavra para significar trabalho (usa-se a palavra ergon, obra; ou a palavra ponos, esforço penoso e doloroso); a palavra latina de onde trabalho deriva é tripalium, um instrumento de três estacas, destinado a prender bois e cavalos difíceis de ferrar, portanto, um instrumento de tortura. A outra palavra latina empregada para designar o trabalho é labor, que corresponde ao grego ponos, portanto, indica pena, fadiga, cansaço, dor e é nesse sentido que se fala em “trabalho de parto”. Os homens livres dispõem de otium – lazer – e os não-livres estão no neg-otium – negação de ócio, trabalho.

O protestantismo, o capitalismo e o liberalismo não podem manter essa imagem do homem livre como homem desocupado, porque, como vimos, fazem o direito de propriedade repousar sobre o trabalho – trabalho de Deus, fazendo o mundo, propriedade do artífice divino; trabalho do homem, instituindo a legitimidade da propriedade privada dos meios de produção, isto é, das condições materiais do trabalho. O negócio (neg-otium) é a alma do capitalismo.

No entanto, algo curioso acontece. Apesar da valorização do trabalho e apesar da ideologia do direito natural, que afirma serem todos os homens livres e iguais, no momento de definir quem tem direito ao poder político, a classe dominante, como vimos, “esquece” a “dignidade do trabalho” e declara o poder político um direito exclusivo dos homens independentes ou livres, isto é, dos que não dependem de outros para viver. Em outras palavras, dos que não precisam trabalhar. Do ponto de vista moral, valoriza-se o trabalho – é ele que disciplina os apetites e desejos imoderados dos seres humanos -, mas, do ponto de vista político, ele não tem valor algum. Na política, a praxis continua sendo a greco-romana.

Marx critica a ideologia da praxis liberal e a concepção protestante do trabalho como esforço, disciplina e controle moral dos indivíduos. O ser humano é praxis. Esta é social e histórica. É o trabalho.

Que é o trabalho?

O trabalho, como vimos ao estudar o conceito de Cultura, é a relação dos seres humanos com a Natureza e entre si, na produção das condições de sua existência. Pelo trabalho, os seres humanos não consomem diretamente a Natureza nem se apropriam diretamente dela, mas a transformam em algo humano também.

A subjetividade humana se exprime num objeto produzido por ela e a objetividade do produto é a materialização externa da subjetividade. Pelo trabalho, os seres humanos estendem sua humanidade à Natureza. É nesse sentido que o trabalho é praxis: ação em que o agente e o produto de sua ação são idênticos, pois o agente se exterioriza na ação produtora e no produto, ao mesmo tempo em que este interioriza uma capacidade criadora humana, ou a subjetividade.

Vimos que, para Marx, nossa consciência é determinada pelas condições históricas em que vivemos. Vimos também que, para ele, os seres humanos fazem a sua própria História – são os sujeitos práticos dela -, mas não a fazem em condições escolhidas voluntariamente por eles. Isso significa que a praxis se realiza em condições históricas dadas e, como sabemos, as condições são postas pela divisão social do trabalho, pelas relações de produção (relação entre meios de produção e forças produtivas), portanto, pela forma da propriedade e pela divisão social das classes.

Vimos, enfim, que embora a consciência seja determinada pelas condições materiais em que vive, as idéias não representam a realidade tal como é e sim tal como aparece, dando ensejo ao surgimento do imaginário social e, com a divisão entre trabalho material e intelectual, ao surgimento da ideologia.

No caso do modo de produção capitalista, a ideologia utiliza a idéia do trabalho de duas maneiras. A primeira, como vimos, é o emprego dessa idéia para legitimar a propriedade privada capitalista. A segunda, é seu uso para legitimar a idéia de contrato social e de contrato de trabalho.

Com efeito, a idéia de contrato vem do Direito Romano, que exige, para validar uma relação contratual, que as partes contratantes sejam livres e iguais. Para afirmar que a sociedade e o Estado nascem de um contrato social, a ideologia burguesa precisa afirmar que todos os homens nascem livres e iguais, embora a Natureza os faça desiguais em talentos e a sociedade os faça desiguais economicamente. A ideologia burguesa precisa, portanto, da idéia de trabalhador livre. Por sua vez, o salário só aparecerá como legítimo se resultar de um contrato de trabalho entre os iguais e livres.

Segundo Marx, o capitalismo efetivamente produziu o trabalhador “livre”: está despojado de todos os meios e instrumentos de produção, de todas as posses e propriedades, restando-lhe apenas a “liberdade” de vender sua força de trabalho. O trabalhador que a ideologia designa como trabalhador livre é o trabalhador realmente expropriado, o assalariado submetido às regras do modo de produção capitalista, convencido de que o contrato de trabalho torna seu salário legal, legítimo e justo.

Assim, num primeiro momento, o quadro oferecido por Marx é pessimista. Embora o ser humano seja praxis e esta seja o trabalho, o processo histórico desfigura o trabalho e o trabalhador, aliena os trabalhadores, que não se reconhecem nos produtos de seus trabalhos. A ideologia burguesa, por sua vez, cria a idéia de Homem Universal, livre e igual, dá-lhe o rosto dos proprietários privados dos meios de produção e persuade os trabalhadores de que também são esse Homem Universal, embora vivam miseravelmente.

No entanto, se a praxis é socialmente determinada, se a consciência é determinada pelas condições sociais do trabalho, nem tudo está perdido. Pelo contrário.

Diferentemente de outros modos de produção, nos quais os trabalhadores (escravos, servos e homens livres) trabalhavam isoladamente e não podiam perceber-se formando uma classe social, no capitalismo industrial as condições de trabalho (as fábricas, as grandes empresas comerciais, os grandes bancos, etc.) forçam os trabalhadores a trabalhar juntos e a conviver em seu local de trabalho.

Podem, por isso, perceber que há classes sociais, cujos interesses não são os mesmos e sim contrários, e podem ver, diariamente, que o que a ideologia lhes ensina como verdade é falso. Por exemplo, a ideologia lhes diz que são livres, mas não têm liberdade para escolher o ofício, para definir o salário, para fixar a jornada de trabalho. A ideologia lhes diz que todos os homens são iguais, mas percebem que não podem ter moradia, vestuário, transporte, educação, saúde, como os seus patrões. Assim, pelas próprias condições de sua praxis cotidiana, têm condições para duvidar do que lhes é dito e ensinado.

São, porém, capazes de algo mais. O capital é uma propriedade privada diferente de todas as outras que existiram na História. De fato, as outras formas de propriedade davam riquezas aos seus proprietários, mas não davam lucro. Com o lucro obtido na venda dos produtos do trabalho, o capital se acumula, cresce, se desenvolve e se amplia.

Pela primeira vez na História, surge uma forma da propriedade privada capaz de aumentar e desenvolver-se. Os trabalhadores podem, afinal, perguntar de onde vem a capacidade espantosa de crescimento do capital. Dizem os ideólogos que esse aumento vem do comércio, cujos lucros são investidos na produção. Nesse caso, por que os capitalistas não investem tudo no comércio, em vez de investir prioritariamente na indústria e na agroindústria?

É que o lucro não vem da comercialização dos produtos para o consumo, mas nasce na própria esfera da produção, isto é, resulta da divisão social do trabalho e do tempo socialmente necessário para produzir alguma coisa.

O que é o modo de produção capitalista? A produção de mercadorias, isto é, de produtos cujo valor não é determinado por seu uso, mas pelo seu valor de troca. Este é determinado pelo custo total para produzir uma mercadoria (custo da matéria-prima, dos instrumentos de trabalho, dos conhecimentos técnicos e dos salários), custo calculado a partir do tempo socialmente necessário para produzi-la (horas de trabalho, horas de transporte, horas de descanso para reposição das forças, horas necessárias para a extração da matéria-prima e seu transporte, horas necessárias para a fabricação das máquinas e outros instrumentos de trabalho, etc.).

Quem produz as mercadorias? Os trabalhadores assalariados, que vendem sua força de trabalho aos proprietários privados dos meios de produção. Como as vendem? Como uma mercadoria entre outras. Qual o procedimento que regula a compra e venda da tal força de trabalho? O contrato de trabalho, que, sendo um contrato, pressupõe que as partes contratantes são livres e iguais, e, portanto, que é por livre e espontânea vontade que o trabalhador vende sua força de trabalho pelo salário. O que é o salário? O que é pago ao trabalhador para garantir sua subsistência e a reprodução de sua força de trabalho (alimentação, moradia, vestuário e condições para procriar). Quanto vale a mercadoria-trabalhador, isto é, quanto vale o salário?

A economia política afirma que o salário corresponde aos custos e ao preço da produção de uma mercadoria. Calcula-se, assim, o que o trabalhador precisa para manter-se e reproduzir-se, deduzindo-se esse montante do custo total da produção e determinando o salário. Na realidade, porém, não é o que ocorre. Para produzir uma determinada mercadoria, um trabalhador precisa de um certo número de horas (suponhamos, por exemplo, quatro horas) e seu salário será calculado a partir desse tempo; entretanto, o trabalhador trabalha durante muito mais tempo (suponhamos, por exemplo, oito horas) e, conseqüentemente, produz muito mais mercadorias; estas, porém, não são computadas para o cálculo do salário, de modo que há um trabalho excedente não pago, isto é, não coberto pelo salário. Esse procedimento ocorre em toda a indústria, na agricultura e no comércio, de maneira que a massa social dos salários de todos os assalariados corresponde apenas a uma parte do tempo socialmente necessário para a produção das mercadorias. A outra parte permanece não paga, formando uma gigantesca massa social de mais-valia (o valor do trabalho excedente não pago). É a mais-valia que forma o lucro que será investido para aumentar o capital.

Assim, essa propriedade privada espantosa, o capital, que parece magia porque parece crescer sozinho, aumentando como se possuísse um fermento interno, na realidade se acumula e se reproduz, se amplia e se estende mundo afora porque se funda na exploração social da massa dos assalariados.

Se os trabalhadores puderem descobrir, pela compreensão do processo de trabalho, que formam uma classe social oposta aos senhores do capital, que estes retiram o lucro da exploração do trabalho, que sem o trabalho não pago não haveria capital e que a ideologia e o Estado capitalistas existem para impedi-los de tal percepção, se puderem compreender isso, sua consciência será conhecimento verdadeiro da praxis social. Terão a ciência de sua praxis.

Se tiverem essa ciência, se conseguirem unir-se e organizar-se para transformar a sociedade e criar outra sem a divisão e a luta de classes, passarão à praxis política.

Visto que a burguesia dispõe de todos os recursos materiais, intelectuais, jurídicos, políticos e militares para conservar o poderio econômico e estatal, buscará impedir a praxis política dos trabalhadores e estes não terão outra saída senão aquela que sempre foi usada pelas classes populares insubmissas e radicais: a revolução.

A teoria marxista da revolução não se confunde, portanto, com as teorias utópicas e libertárias, porque não se baseia na miséria, na infelicidade e na injustiça a que estão submetidos os trabalhadores, mas se fundamenta na análise científica da sociedade capitalista (nas “leis” do capital, ou da economia política) e nela encontra os modos pelos quais os trabalhadores realizam sua própria emancipação. Por isso, Marx e Engels disseram que a emancipação dos trabalhadores terá que ser obra histórica dos próprios trabalhadores. A sociedade comunista, sem propriedade privada dos meios de produção, sem classes sociais, sem exploração do trabalho, sem poder estatal, livre e igualitária, resulta, portanto, da praxis revolucionária da classe trabalhadora.

Num célebre panfleto político, o Manifesto comunista, que conclamava os proletários do mundo todo a se unir e a se organizar para a longa luta contra o capital, Marx e Engels consideravam que a fase final do combate proletário seria a revolução e que esta, antes de chegar à sociedade comunista, teria que demolir o aparato estatal (jurídico, burocrático, policial e militar) burguês.

Essa demolição foi designada por eles com a expressão “ditadura do proletariado”, tomando a palavra ditadura do vocabulário político dos romanos. Estes, toda vez que Roma atravessava uma crise que poderia destruí-la, convocavam um homem ilustre e lhe davam, por um período determinado, o poder para refazer as leis e punir os inimigos de Roma, retirando-lhe o poder assim que a crise estivesse superada. A ditadura do proletariado seria um breve período de tempo em que, não existindo ainda a sociedade sem Estado e já não existindo o Estado burguês, os proletários – portanto, uma classe social – governariam no sentido de desfazer todos os mecanismos econômicos e políticos responsáveis pela existência de classes sociais e, portanto, causadores da exploração social.

Julgava Marx que essa seria a última revolução popular. Por que a última? Porque aboliria a causa de todas as revoluções que as anteriores não haviam conseguido abolir: a propriedade privada dos meios de produção. Só assim o trabalho poderia ser verdadeiramente praxis humana criadora.



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[i] A palavra utopia foi empregada pela primeira vez pelo filósofo inglês Thomas Morus, no livro Utopia, a cidade ideal perfeita. A palavra é uma composição de palavras gregas e, rigorosamente, significa: em lugar nenhum, lugar inexistente, imaginário. Por esse motivo, estamos acostumados a identificar utopia e utópico com impossível, aquilo que só existe em nosso desejo e imaginação e que não encontrará, nunca, condições objetivas para se realizar.

[ii] Do artigo "Big Brother zangou e nós pagamos o pato", escrito por Alberto Dines e publicado no Observatório da Imprensa nº 172, de 15/05/2002: “Para quem não sabe ou esqueceu: antes de ser nome de reality show, Big Brother é a alcunha da entidade inventada por George Orwell em 1984, sua fábula sobre o futuro. Inspirado na máquina de propaganda nazista, posteriormente aperfeiçoada pelo stalinismo, o rebelde Orwell concebeu na sua trágica utopia um Grande Irmão, protetor e castrador capaz de controlar acontecimentos, informações e aniquilar vontades.” [Nota de Pausa para a Filosofia.]

[iii] A noção de materialismo surge, pela primeira vez, na filosofia grega. As escolas filosóficas estóica e epicurista afirmaram, contra Platão, Aristóteles e neoplatônicos, que só existem corpos ou a matéria. Os epicuristas, retomando idéias dos pré-socráticos atomistas (Leucipo e Demócrito), afirmaram que o espírito era átomo material sutil e diáfano. Nos séculos XVII e XVIII, reagindo contra o espiritualismo cristão, muitos filósofos se disseram materialistas, querendo com isto dizer que só existe a Natureza e que esta é matéria (átomos, movimento, massa, figura, etc.). Como vivemos em sociedades cristãs (mesmo que haja outras religiões minoritárias), o materialismo sempre foi considerado blasfêmia e heresia porque nega a existência de puros espíritos, a imortalidade da alma e a separação entre Deus e Natureza. O senso comum social, absorvendo a crítica espiritualista, fala em “materialismo” para referir-se a pessoas que só acreditam nesta vista terrena, egoístas e ambiciosas, sem preocupação com a salvação eterna e com o bem e a salvação do próximo. O “materialista” é o que gosta de prazeres, riquezas e luxo (rigorosamente, portanto, dever-se-ia dizer que os burgueses são “materialistas”, embora se digam cristãos espiritualistas). Quando Marx fala em materialismo, a matéria à qual se refere não são os corpos físicos, os átomos, os seres naturais, e sim as relações sociais de produção econômica. Seu materialismo visa opor-se ao idealismo espiritualista hegeliano, para o qual a força que move a História é a Idéia, o Espírito, a Consciência.

[iv] Ver o que foi examinado sobre a dialética no capítulo 4 da unidade 5.

[v] Ver capítulo 4 da unidade 7.


Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.

Unidade 8
O mundo da prática

Capítulo 11
A questão democrática

As experiências totalitárias: fascismo e nazismo

O século XX, durante os decênios de 1920-1940, viu acontecer uma experiência política sem precedentes: o totalitarismo, realizado por duas práticas políticas, o fascismo (originado na Itália) e o nazismo ou nacional-socialismo (originado na Alemanha).

A Alemanha, derrotada na Primeira Guerra Mundial, perde territórios e é obrigada a pagar somas vultosas aos vencedores para ressarci-los dos prejuízos da guerra. A economia está destroçada, reinam o desemprego, a recessão e a inflação galopante. A crise toma proporções excessivas quando, em 1929, a Bolsa de Valores de Nova York “quebra”, levando à ruína boa parte do capital mundial.

Partindo da crítica marxista ao liberalismo, mas recusando a idéia de revolução proletária comunista, o austríaco Adolf Hitler se oferece à burguesia e à classe média para salvá-las da revolução operária. Propõe o reerguimento da Alemanha através do fortalecimento do Estado, do nacionalismo geopolítico (a nação é o “espaço vital” do povo, que deve conquistar e manter territórios necessários ao seu desenvolvimento econômico) e da aliança com os setores conservadores do capital industrial e sobretudo do capital financeiro. Hitler é eleito, em eleições livres e diretas, para o parlamento e, a seguir, dá o golpe de Estado nazista.

A Itália, embora estivesse do lado dos vencedores da Primeira Guerra Mundial, ficou insatisfeita com as compensações que lhe foram dadas e, ao mesmo tempo, tentava manter-se economicamente pela exploração de colônias na África. Benito Mussolini, como Hitler, partiu da crítica marxista ao liberalismo, mas, como Hitler, recusava a idéia de revolução proletária comunista. Em vez dela, propôs o fortalecimento do Estado nacional, a aliança com setores conservadores do capital industrial e financeiro, a guerra de conquista de territórios e o nacionalismo baseado nas glórias do antigo Império Romano.

Por que nazismo? Essa palavra é a abreviação do nome de um partido político ao qual Hitler se filiou. Inicialmente, o partido denominava-se Partido Operário Alemão, mas Hitler propôs que fosse denominado Partido Operário Alemão Nacional-Socialista (Nationalsozialistische – Nazi). Operário, para indicar a oposição aos liberais, mas nacional-socialista para indicar a oposição aos comunistas e socialistas (críticos do nacionalismo por ser uma ideologia necessária ao capital).

A palavra fascismo foi inventada por Mussolini a partir do vocábulo italiano fascio, feixe. É dupla a significação do fascio: por um lado, refere-se ao conjunto de machados reunidos por meio de um feixe de varas, carregados por funcionários que precediam a aparição pública dos magistrados na antiga Roma, os machados significando o poder do Estado para decapitar criminosos e as varas, a unidade do povo romano em torno do Estado; por outro lado, refere-se a uma tradição popular do século XIX, em que certas comunidades, lutando por seus interesses e direitos, simbolizavam sua luta e unidade pelos fasci. Mussolini se apropria do símbolo romano e popular, criando por toda a Itália os fasci de combate.

Embora de origem e significação diferentes, nazismo e fascismo possuem aspectos comuns:

● o antiliberalismo: não como afirmação do socialismo e sim como defesa da total intervenção do Estado na economia e na sociedade civil. Em sua fase inicial, ambos se apresentam contra a ordem burguesa e conseguem a adesão da maioria da classe trabalhadora, que sofria as misérias da recessão e do desemprego;

● a colaboração de classe: afirmação de que o capital e o trabalho não são contrários nem contraditórios, mas podem e devem colaborar em harmonia para o bem da coletividade. No lugar das classes sociais, propõem (e criam) as corporações de ofício e de categoria, de modo a ocultar a divisão entre o capital e o trabalho. A idéia de Estado Corporativo havia sido elaborada pela Igreja Católica e exposta na bula do papa Leão XIII, Rerum Novarum, escrita contra socialistas e comunistas;

● aliança com o capital industrial monopolista e financeiro: isto é, com os setores do capital cuja vocação é imperialista, exigindo a conquista de novos territórios para a ampliação do mercado e o acúmulo do capital;

● nacionalismo: a realidade social é a Nação, entendida como unidade territorial e identidade racial, lingüística, de costumes e tradições. A nação é o espírito do povo, a pátria-mãe dos antepassados de sangue, una, única e indivisa;

● corporativismo: a sociedade, como propunha o papa Leão XIII, deve ser organizada pelo Estado sob a forma de corporações do trabalho e do capital, hierarquizadas por suas funções e harmonizadas pela política econômica do Estado;

● partido único que organiza as massas: em lugar de classes sociais, a nação é vista como constituída pelo povo e este é a massa organizada pelo partido único, que a exprime e representa. O partido organiza a sociedade não só em sindicatos corporativos, mas também em associações: de jovens, de mulheres, de crianças, de artistas, de escritores, de cientistas, de bairro, de ginástica e dança, de música, etc. A relação entre a sociedade (a nação) e o Estado é feita pela mediação do partido;

● ideologia de classe média: no modo de produção capitalista, há uma camada social que não é proletária-camponesa, nem é proprietária privada dos meios de produção, não é burguesa; trata-se da classe média, constituída por comerciantes, profissionais liberais, intelectuais, artistas, artesãos independentes e funcionários públicos. Essa classe valoriza os valores e os costumes da burguesia e teme a proletarização, sendo por isso anti-socialista e anticomunista. Embora admire a burguesia, sente rancor por não possuir a riqueza e os privilégios burgueses.

Com efeito, a classe média acredita no individualismo competitivo, na idéia do “homem que se faz sozinho”, graças à disciplina, à boa família, aos bons costumes e ao trabalho. Mas, ao contrário de suas expectativas, não consegue, apesar dos esforços, “subir na vida” e responsabiliza a “cobiça dos ricos” por sua situação inferiorizada, atribuindo-a à desordem do liberalismo. Por essas características, a classe média é conservadora e reacionária, tendo predileção por propostas políticas que lhe prometam organizar o Estado e a economia de tal modo que desapareçam o liberalismo e o risco do socialismo-comunismo. É o destinatário privilegiado e preferido do nazismo e do fascismo;

● imperialismo belicista: pela aliança com o capital monopolista e financeiro, pela ideologia nacionalista expansionista, pela ideologia de classe média, que espera das conquistas militares melhoria de suas condições sociais, nazismo e fascismo são políticas de guerra e de conquista. Hitler falará do sangue germânico que corre nas veias dos povos da Europa central e deverá ser “reconduzido” à mãe-pátria alemã pela guerra. Mussolini falará nas glórias do Império Romano e em sua reconquista pelas guerras italianas;

● educação moral e cívica: para garantir a adesão das massas à ideologia nazi-fascista, o Estado introduz a educação moral e cívica, pela qual crianças e adolescentes aprenderão os valores nazi-fascistas de pátria, disciplina, força do caráter, formação de corpos belos, saudáveis, poderosos, necessários aos guerreiros dos novos impérios;

● propaganda de massa: o nazi-fascismo introduz, pela primeira vez na História, a prática (hoje cotidiana e banal) da propaganda dirigida às massas. Essa propaganda é política, voltada para a manifestação de sentimentos, emoções e paixões, desvalorizando a razão, o pensamento e a consciência crítica. Por meio do rádio e da imprensa, de cartazes, desfiles, bandas, jogos atléticos, filmes, o nazi-fascismo procura incutir na massa a devoção incondicional à pátria e aos chefes, o amor à hierarquia, à disciplina e à guerra;

● prática da censura e da delação: o Estado, através do partido, das associações e de aparelhos especializados (policiais e militares), controla o pensamento, as ciências e as artes por meio da censura, queimando livros e obras de arte “contrários” à pátria e aos chefes, prendendo e torturando os dissidentes, perseguindo os “inimigos internos”. Estimula também, sobretudo em crianças e jovens, a prática da delação contra os dissidentes, “desviantes” e “inimigos internos” do Estado;

● racismo: menos forte no fascismo, é um componente essencial do nazismo, que inventa a idéia de “raça ariana” ou “raça nórdica”, superior a todas as outras, devendo conquistar algumas para que a sirvam, e aniquilar outras porque “inservíveis” e “perigosas”. A idéia de aniquilação das “raças inferiores” faz do genocídio uma política do Estado. O nazismo considerou os negros africanos, poloneses, tchecos, húngaros, romenos, croatas, sérvios e demais brancos europeus como raças inferiores a serem conquistadas. Considerou ciganos e judeus como raças a serem eliminadas (exterminou seis milhões de judeus);

● estatismo: contra o Estado liberal (considerado caótico) e contra as revoluções socialistas e comunistas (que recusam o Estado), o nazi-fascismo cria o Estado forte, centralizado administrativamente, militarizado, que controla toda a sociedade por meio do partido, das milícias de jovens, da educação moral e cívica, da propaganda, da censura e da delação. Existe apenas o Estado como totalidade que engloba em seu interior o todo da sociedade.

Totalitarismo, portanto, significa Estado total, que absorve em seu interior e em sua organização o todo da sociedade e suas instituições, controlando-a por inteiro.

O nazi-fascismo proliferou por toda a parte. Foi vitorioso não apenas na Itália e na Alemanha, mas, com variações, tomou o poder na Espanha (de Franco), em Portugal (com Salazar) e em vários países da Europa Oriental.

Conseguiu ter partidos significativos em países como França (Ação Francesa), Inglaterra, Bélgica, Áustria, Argentina. No Brasil, deu origem à Ação Integralista Brasileira, criada por Plínio Salgado.

A Revolução de Outubro

Em outubro de 1917, contra toda expectativa marxista, tem lugar a Revolução Russa, sob a liderança do Partido Bolchevique.

Por que contra toda expectativa marxista? Porque Marx julgara que a revolução proletária só poderia realizar-se quando as contradições internas ao capitalismo esgotassem as possibilidades econômicas e políticas da burguesia e o proletariado, através da revolução, instaurasse a nova sociedade comunista. Em termos marxistas, a revolução proletária deveria acontecer nos países de capitalismo avançado, como a Inglaterra, a França, a Alemanha.

Era essencial para a teoria da praxis revolucionária o pleno desenvolvimento do capitalismo, pois isso significava que a infra-estrutura econômica, o avanço tecnológico e o grau de organização da classe trabalhadora preparariam a grande mudança histórica. Não era concebível, portanto, a revolução na Rússia, que vivia sob o Antigo Regime (a monarquia por direito divino, absoluta ou czarista), era majoritariamente pré-capitalista, com pequeno desenvolvimento do capitalismo em alguns centros urbanos, promovido não pela burguesia (quase inexistente), mas pelo próprio Estado e pelo capital externo (inglês, francês e alemão), sem forte consciência e organização proletárias.

Foi ali, porém, que aconteceu a primeira revolução proletária, antecedida por duas revoluções menores: a de 1905, que instaurou o parlamento, com partidos políticos da burguesia liberal, e a de fevereiro de 1917, que proclamou a república e convocou uma assembléia constituinte, mas cujo governo provisório não realizou as reformas prometidas e prosseguiu na guerra contra a Alemanha, provocando reação popular e rebelião das tropas.

Nas circunstâncias russas, o grande sujeito revolucionário não pôde ser a classe proletária organizada, mas teve que ser uma vanguarda política, liderada por intelectuais acostumados às lutas clandestinas, o Partido Bolchevique ou a fração majoritária do Partido Social-Democrata, que iria tornar-se o Partido Comunista Russo.

Que dificuldades enfrentou a Revolução de Outubro?

● as dificuldades previsíveis, que toda revolução comunista enfrentaria, isto é, a reação militar e econômica do capital, sob a forma de guerra civil e de boicote econômico internacional;

● a existência da Primeira Guerra Mundial, que não só depauperou a precária economia russa, mas também permitiu que os poderes capitalistas enviassem tropas para auxiliar a contra-revolução, o chamado Exército dos Brancos;

● o fracasso da revolução comunista alemã, em 1919, da qual se esperava não só apoio para o desenvolvimento da sociedade socialista russa, mas também que fosse o estopim da revolução proletária mundial; esta, se ocorresse, livraria a revolução russa do isolamento, do boicote capitalista internacional e da ameaça permanente de invasão militar capitalista;

● a ausência de forte consciência política e organização operárias num país majoritariamente camponês e no qual as atividades políticas tinham sido necessariamente obra de grupos clandestinos, formados sobretudo por intelectuais e estudantes. O contingente revolucionário mais significativo que os bolcheviques conseguiram não veio do proletariado organizado, mas das tropas (exército e marinha) rebeladas contra a guerra mundial, iniciada em 1914. A militarização, inevitável em toda revolução, no caso da russa institucionalizou-se como organização do Partido Bolchevique;

● a ausência de economia capitalista desenvolvida que houvesse preparado a infra-estrutura econômica e a organização sociopolítica para a nova sociedade. A revolução teve que realizar duas revoluções numa só: a burguesa, de destruição do Antigo Regime, e a comunista, contra a burguesia. Essa situação, mais a ruína econômica causada pela guerra e pela continuação da guerra civil, bem como o boicote do capitalismo internacional obrigaram ao chamado “comunismo de guerra”, que transformou a “ditadura do proletariado” em ditadura do Partido Bolchevique para a instauração de uma nova forma inesperada de capitalismo, o capitalismo de Estado, considerado “etapa socialista” para a futura sociedade comunista. Em outras palavras, a estatização da economia substituiu a abolição do Estado, prevista pelo Manifesto comunista.

Assenhoreando-se do Estado, o Partido Bolchevique criou um poderoso aparato militar e burocrático, que, evidentemente, entrou em conflito com os conselhos populares de operários, camponeses e soldados, os sovietes, pois estes haviam-se organizado para realizar o autogoverno de uma sociedade sem Estado. Os sovietes foram sendo dizimados e substituídos por órgãos do Partido Bolchevique, deles restando apenas o nome, que seria colado ao de república socialista: República Socialista Soviética.

Em 1923, o Partido Bolchevique está profundamente dividido entre a posição de Trotski – que critica a burocratização e propõe a tese da revolução permanente – e a de Stalin, que conseguira galgar o posto de secretário-geral do partido, acumulando enormes poderes em suas mãos. Doente, Lênin escreve um testamento político no qual sugere o afastamento de Stalin, alertando para o perigo de seu autoritarismo. Não foi, porém, atendido. Morre em janeiro de 1924.

Valendo-se do cargo e colocando a direção partidária contra Trotski, Stalin assume o poder do Estado. Sob sua orientação (embora ficasse nos bastidores), as principais lideranças da revolução foram expulsas do partido; Trotski foi banido e, em 1940, assassinado por um agente stalinista, no México.

Com a tese “socialismo num só país” (portanto oposta à tese marxista do internacionalismo proletário e da revolução mundial), Stalin implanta à força a coletivização da economia, sob a direção do Estado e do partido. Exerce controle militar, policial e ideológico sobre toda a sociedade, institui o “culto à personalidade” e, em 1936, começa os grandes expurgos políticos, conhecidos como “processos de Moscou”. Sempre nos bastidores, conseguiu que seus aliados forjassem todo tipo de acusação contra lideranças políticas de oposição, levando-as à condenação à morte, ou à prisão perpétua em campos de concentração. Fortaleceu a polícia secreta e consolidou o totalitarismo.

Além da coletivização econômica, planejou a economia para investimentos na indústria pesada, sacrificando a produção de bens de consumo e os serviços públicos sociais. Prevendo a Segunda Guerra Mundial, orientou a economia para a indústria bélica, química pesada e energia elétrica, produzindo, às custas de enormes sacrifícios e privações da população, o maior crescimento econômico da história da Rússia, que se tornou potência econômica e militar mundial.

O totalitarismo stalinista

Embora o totalitarismo russo esteja ligado indissoluvelmente ao nome de Stalin, isso não significa que tenha terminado com sua morte.

Até a chamada glasnost (transparência), proposta nos anos 80 por Gorbatchev, existiu o stalinismo sem Stalin, ou seja, o totalitarismo.

Muitos traços do stalinismo são semelhantes aos do nazi-fascismo (centralização estatal, partido único com controle total sobre a sociedade, militarização, nacionalismo, imperialismo, censura do pensamento e da expressão, propaganda estatal no lugar da informação, campos de concentração, invenção contínua dos “inimigos internos”), mas a diferença fundamental e trágica entre eles está no fato de que o stalinismo sufocou a primeira revolução proletária e deformou profundamente o marxismo, marcando com o selo totalitário os partidos comunistas do mundo inteiro.

As grandes teses de Marx foram destruídas pelas teses stalinistas:

● à tese marxista da revolução proletária mundial, o stalinismo contrapôs a tese do socialismo num só país, transformando-a em diretriz obrigatória para os partidos comunistas do mundo inteiro. Isso significou que tais partidos deveriam abandonar práticas revolucionárias em seus países, para não prejudicar as relações internacionais da União Soviética. Eram estimuladas, porém, as guerras de libertação nacional contra os países colonialistas sempre que isso fosse do interesse econômico e geopolítico da Rússia;

● à tese marxista da ditadura do proletariado para a derrubada do Estado, o stalinismo contrapôs a ditadura do partido único e do Estado forte;

● à tese marxista da abolição do Estado na sociedade comunista sem classes sociais, contrapôs o agigantamento do Estado, a absorção da sociedade pelo aparelho estatal e pelos órgãos do partido, cuja burocracia constituiu-se numa nova classe dominante, com interesses e privilégios próprios;

● à tese marxista da luta proletária contra a burguesia e a pequena burguesia, bem como à afirmação de que, em muitos processos revolucionários, parte da burguesia e da pequena burguesia se aliam ao proletariado, mas o abandonam a partir de certo ponto, devendo ele prosseguir sozinho na ação revolucionária, o stalinismo contrapôs a tese oportunista da “estratégia” e da “tática”, segundo a qual, em certos casos, o proletariado faria alianças e nelas permaneceria e, em outros, não faria aliança alguma, se isso não fosse do interesse da vanguarda partidária;

● à tese marxista do internacionalismo proletário (“Proletários de todos os países, uni-vos”, dizia o Manifesto comunista), contrapôs o nacionalismo e o imperialismo russos, primeiro invadindo e dominando a Europa Oriental, e depois os países asiáticos não dominados pela China;

● à tese marxista do partido político como instrumento de organização da classe trabalhadora e expressão prática de suas idéias e lutas, contrapôs a burocracia partidária como vanguarda política, que não só “representa” os interesses proletários, mas os encarna e os dirige, pois é detentora do poder e do saber;

● à tese marxista da relação indissolúvel entre as idéias e as condições materiais, isto é, entre teoria e prática, que permitia o desenvolvimento da consciência crítica da classe trabalhadora, contrapôs a propaganda estatal, a ideologia do chefe como “pai dos povos”, o controle da educação e dos meios de comunicação pelo partido e pelo Estado;

● à tese de Marx de que a teoria e a prática estão numa relação dialética, que o conhecimento é histórico e um processo interminável de análise e compreensão das condições concretas postas pela realidade social, o stalinismo contrapôs uma invenção, o Diamat (materialismo dialético), isto é, o marxismo como doutrina a–histórica, fixada em dogmas expostos sob a forma de catecismos de vulgarização da ideologia stalinista. Foi tão longe nisso, que considerou função do Estado definir o pensamento correto.

Para tanto, os intelectuais do partido foram encarregados de determinar as linhas “corretas” para a Filosofia, as ciências e as artes. Instituiu-se a psicologia oficial, a medicina e a genética oficiais, a literatura, a pintura, a música e o cinema oficiais, a filosofia e a ciência oficiais, encarregando-se a polícia secreta de queimar obras, prender, torturar, assassinar ou enviar para campos de concentração os “dissidentes” ou “desviantes”. Os herdeiros de Stalin foram mais longe: consideravam que, como o partido e o Estado dizem a verdade absoluta, os “desvios” intelectuais, artísticos e políticos eram sintomas de distúrbios psíquicos e de loucura, enviando os “dissidentes” para hospitais psiquiátricos;

● à tese marxista de que a classe trabalhadora é sujeito de sua própria história quando toma consciência de sua situação e luta contra ela, aprendendo com a memória dos combates e a tradição das derrotas, o stalinismo contrapôs a idéia de história oficial da classe proletária, identificada com a história do partido comunista e com a interpretação dada por este último aos acontecimentos históricos, roubando assim dos trabalhadores o direito à memória;

● à tese marxista de que os inimigos da classe trabalhadora não são indivíduos dessa ou daquela classe, mas uma outra classe social enquanto classe, contrapôs a idéia de “inimigos do povo saídos do seio do próprio povo” como inimigos de sua própria classe, porque são “agentes estrangeiros infiltrados no seio do povo uno, indiviso, bom e homogêneo”;

● à tese de Marx da nova sociedade como concretização da liberdade, da igualdade, da abundância, da justiça e da felicidade, o stalinismo contrapôs o “operário-modelo” e o “militante exemplar”, acostumados à obediência cega aos comandos do Estado e do partido e à hierarquia social imposta por eles. Viver pelo e para o Estado e o partido tornaram-se sinônimos de felicidade, liberdade e justiça.

A transformação das idéias e práticas stalinistas em instituições sociais fez com que o stalinismo não fosse um acontecimento de superfície, que pudesse ser apagado com a morte de Stalin. Pelo contrário. Foi instituída uma nova formação social, que modelou corpos, corações e mentes e que só desapareceu, parcialmente, no fim dos anos 80 e inícios dos 90, porque a crise econômica, provocada pelo delírio armamentista, fez emergirem contradições sufocadas durante 70 anos.

A democracia como ideologia

Dois acontecimentos políticos marcaram o período posterior à Segunda Guerra Mundial: a guerra fria e o surgimento do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State).

A guerra fria foi a divisão geopolítica, econômica e militar entre dois grandes blocos: o bloco capitalista, sob a direção dos Estados Unidos, e o bloco comunista, sob a direção da União Soviética e da China. Uma das principais razões para essa divisão foi militar, isto é, a invenção da bomba atômica, que punha fim às guerras convencionais.

Inicialmente, cada bloco julgava que a posse de armamentos nucleares lhe daria mais poder para eliminar o outro. Pouco a pouco, porém, a chamada “corrida armamentista” deixou de visar diretamente à guerra, voltando-se para a intimidação recíproca dos adversários, limitando suas ações imperialistas. Finalmente, percebeu-se que uma guerra não convencional ou nuclear teria resultado zero, ou seja, não teria vencedores, pois o planeta seria inteiramente destruído. Antes, porém, que se chegasse a essa conclusão, a guerra fria definiu o alinhamento político e econômico de todos os países à volta dos dois blocos hegemônicos.

O Estado do Bem-Estar Social (Welfare State) foi implantado nos países capitalistas avançados do hemisfério norte como defesa do capitalismo contra o perigo do retorno do nazi-fascismo e da revolução comunista. A crise econômica gerada pela guerra, as críticas nazi-fascista e socialista ao liberalismo, a imagem da sociedade socialista em construção na União Soviética e na China, fazendo com que os trabalhadores encontrassem nelas (ignorando o que ali realmente se passava) um contraponto para as desigualdades e injustiças do capitalismo, tudo isso levou a prática política a afirmar a necessidade de alterar a ação do Estado, corrigindo os problemas econômicos e sociais.

O Estado passa a intervir na economia, investindo em indústrias estatais, subsidiando empresas privadas na indústria, na agricultura e no comércio, exercendo controle sobre preços, salários e taxas de juros. Assume para si um conjunto de encargos sociais ou serviços públicos sociais: saúde, educação, moradia, transporte, previdência social, seguro-desemprego. Atende demandas de cidadania política, como o sufrágio universal.

Sob os efeitos da guerra fria e do Estado do Bem-Estar Social, o bloco capitalista procurou impedir, nos países economicamente subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo (América Latina, África, Oriente Médio), rebeliões populares que desembocassem em revoluções socialistas. O perigo existe por dois motivos principais: ou porque os países do Terceiro Mundo são colônias dos países capitalistas, ou porque neles a desigualdade econômico-social, a miséria e as injustiças são de tal monta que, nas colônias, guerras de libertação nacional e, nos demais países, rebeliões populares podem acontecer a qualquer momento e transformar-se em revoluções. O caso de Cuba, em 1958, evidenciou essa possibilidade.

Os países mais fortes do bloco capitalista adotaram duas medidas: através do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), fizeram empréstimos aos Estados do Terceiro Mundo para investir nos serviços sociais e em empresas estatais; e, através dos serviços de espionagem e das forças armadas, ofereceram “ajuda” militar para reprimir revoltas e revoluções. Com isso, estimularam, sobretudo a partir dos anos 60, a proliferação de ditaduras militares e regimes autoritários no Terceiro Mundo, como foi o caso do Brasil.

No centro do discurso político capitalista encontra-se a defesa da democracia.

Vimos que as formações sociais totalitárias cresceram à sombra da crítica à democracia liberal, considerada responsável pela desordem e caos sócio-econômicos, porque abandona a sociedade à cobiça ilimitada dos ricos e poderosos. A democracia é o mal.

Por seu turno, na luta contra os totalitarismos, os Estados capitalistas afirmaram tratar-se do combate entre a opressão e a liberdade, a ditadura e a democracia. A democracia é o bem.

Nos dois casos, a democracia, erguida ora como o mal, ora como o bem, deixava de ser encarada como forma da vida social para tornar-se um tipo de governo e um instrumento ideológico para esconder o que ela é, em nome do que ela “vale”. Tanto assim, que os grandes Estados capitalistas, campeões da democracia, não tiveram dúvida em auxiliar a implantação de regimes autoritários (portanto antidemocráticos) toda vez que lhes pareceu conveniente.

Embora liberalismo e Estado do Bem-Estar Social (ou social-democracia) sejam diferentes quanto à questão dos direitos – o primeiro limita os direitos à cidadania política da classe dominante, o segundo amplia a cidadania política e acolhe a idéia de direitos sociais -, no que tange à democracia são semelhantes. Como a definem? Como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. O que isso quer dizer?

Em primeiro lugar, que identificam liberdade e competição – tanto a competição econômica da chamada “livre iniciativa”, quanto a competição política entre partidos que disputam eleições.

Em segundo lugar, que identificam a lei com a potência judiciária para limitar o poder político, defendendo a sociedade contra a tirania, a lei garantindo os governos escolhidos pela vontade da maioria.

Em terceiro lugar, que identificam a ordem com a potência do executivo e do judiciário para conter e limitar os conflitos sociais, impedindo o desenvolvimento da luta de classes, seja pela repressão, seja pelo atendimento das demandas por direitos sociais (emprego, boas condições de trabalho e salário, educação, moradia, saúde, transporte, lazer).

Em quarto lugar, que, embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia. Em outras palavras, defendem a democracia porque lhes parece um regime favorável à apatia política – a política seria assunto dos representantes, que são políticos profissionais -, que, por seu turno, favorece a formação de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado, evitando, dessa maneira, uma participação política que traria à cena os “extremistas” e “radicais” da sociedade.

A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos e manifestando-se no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas (e não políticas) para os problemas sociais.

Vista por esse prisma, é realmente uma ideologia política e justifica a crítica que lhe dirigiu Marx ao referir-se ao formalismo jurídico que preside a idéia de direitos do cidadão. Em outras palavras, desde a Revolução Francesa de 1789, essa democracia declara os direitos universais do homem e do cidadão, mas a sociedade está estruturada de tal maneira que tais direitos não podem existir concretamente para a maioria da população. A democracia é formal, não é concreta.

A sociedade democrática

Vimos que uma ideologia não nasce do nada, nem repousa no vazio, mas exprime, de maneira invertida, dissimulada e imaginária, a praxis social e histórica concretas. Isso se aplica à ideologia democrática. Em outras palavras, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que a ideologia democrática percebe e deixa perceber.

Que significam as eleições? Muito mais do que a mera rotatividade de governos ou a alternância no poder. Simbolizam o essencial da democracia: que o poder não se identifica com os ocupantes do governo, não lhes pertence, mas é sempre um lugar vazio, que os cidadãos, periodicamente, preenchem com um representante, podendo revogar seu mandato se não cumprir o que lhe foi delegado para representar.

As idéias de situação e oposição, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitadas e garantidas pela lei, vão muito além dessa aparência. Significam que a sociedade não é uma comunidade una e indivisa voltada para o bem comum obtido por consenso, mas, ao contrário, que está internamente dividida e que as divisões são legítimas e devem expressar-se publicamente. A democracia é a única forma política que considera o conflito legítimo e legal, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade.

As idéias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significam que os cidadãos são sujeitos de direitos e que, onde tais direitos não existam nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É esse o cerne da democracia.

Um direito difere de uma necessidade ou carência e de um interesse.

Uma necessidade ou carência é algo particular e específico. Alguém pode ter necessidade de água, outro, de comida. Um grupo social pode ter carência de transportes, outro, de hospitais. Há tantas necessidades quanto indivíduos, tantas carências quanto grupos sociais.

Um interesse também é algo particular e específico. Os interesses dos estudantes brasileiros podem ser diferentes dos interesses dos estudantes argentinos. Os interesses dos agricultores podem ser diferentes dos interesses dos comerciantes. Os interesses dos bancários, diferentes dos interesses dos banqueiros. Os interesses dos índios, diferentes dos interesses dos garimpeiros.

Necessidades ou carências podem ser conflitantes. Suponhamos que, por exemplo, numa região de uma grande cidade, as mulheres trabalhadoras tenham necessidade ou carência de creches para seus filhos e que, na mesma região, um outro grupo social, favelado, tenha carência de moradia. O governo municipal dispõe de recursos para atender a uma das carências, mas não a ambas, de sorte que resolver uma significará abandonar a outra.

Interesses também podem ser conflitantes. Suponhamos, por exemplo, que interesse a grandes proprietários de terra deixá-las inativas esperando a valorização imobiliária, mas que interesse a trabalhadores rurais sem terra o cultivo de alimentos para a sobrevivência; temos aí um conflito de interesses. Suponhamos que interesse aos proprietários de empresas comerciais estabelecer um horário de trabalho que aumente as vendas, mas que interesse aos comerciários um outro horário, no qual possam dispor de horas para estudar, cuidar da família e descansar. Temos aqui um outro conflito de interesses.

Um direito, ao contrário de necessidades, carências e interesses, não é particular e específico, mas geral e universal, válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais. Assim, por exemplo, a carência de água e de comida manifesta algo mais profundo: o direito à vida. A carência de moradia ou de transporte também manifesta algo mais profundo: o direito a boas condições de vida. O interesse dos estudantes, o direito à educação e à informação. O interesse dos sem-terra, o direito ao trabalho. O dos comerciários, o direito a boas condições de trabalho.

Dizemos que uma sociedade – e não um simples regime de governo – é democrática, quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e das minorias, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos.

A criação de direitos

Quando a democracia foi inventada pelos atenienses, criou-se a tradição democrática como instituição de três direitos fundamentais que definiam o cidadão: igualdade, liberdade e participação no poder. Igualdade significava: perante as leis e os costumes da polis, todos os cidadãos possuem os mesmos direitos e devem ser tratados da mesma maneira. Por esse motivo, Aristóteles afirmava que a primeira tarefa da justiça era igualar os desiguais, seja pela redistribuição da riqueza social, seja pela garantia de participação no governo. Também pelo mesmo motivo, Marx afirmava que a igualdade só se tornaria um direito concreto quando não houvesse escravos, servos e assalariados explorados, mas fosse dado a cada um segundo suas necessidades e segundo seu trabalho.

A observação de Aristóteles e, depois, a de Marx indicam algo preciso: a mera declaração do direito à igualdade não faz existir os iguais, mas abre o campo para a criação da igualdade, através das exigências e demandas dos sujeitos sociais. Em outras palavras, declarado o direito à igualdade, a sociedade pode instituir formas de reivindicação para criá-lo como direito real.

Liberdade significava: todo cidadão tem o direito de expor em público seus interesses e suas opiniões, vê-los debatidos pelos demais e aprovados ou rejeitados pela maioria, devendo acatar a decisão tomada publicamente. Na modernidade, com a Revolução Inglesa de 1644 e a Revolução Francesa de 1789, o direito à liberdade ampliou-se. Além da liberdade de pensamento e de expressão, passou a significar o direito à independência para escolher o ofício, o local de moradia, o tipo de educação, o cônjuge, em suma, a recusa das hierarquias fixas, supostamente divinas ou naturais.

Acrescentou-se, em 1789, um direito de enorme importância, qual seja, o de que todo indivíduo é inocente até prova em contrário, que a prova deve ser estabelecida perante um tribunal e que a liberação ou punição devem ser dadas segundo a lei. Com os movimentos socialistas, a luta social por liberdade ampliou ainda mais esse direito, acrescentando-lhe o direito de lutar contra todas as formas de tirania, censura e tortura e contra todas as formas de exploração e dominação social, econômica, cultural e política.

Observamos aqui o mesmo que na igualdade: a simples declaração do direito à liberdade não a institui concretamente, mas abre o campo histórico para a criação desse direito pela práxis humana.

Participação no poder significava: todos os cidadãos têm o direito de participar das discussões e deliberações públicas da polis, votando ou revogando decisões. Esse direito possuía um significado muito preciso. Nele afirmava-se que, do ponto de vista político, todos os cidadãos têm competência para opinar e decidir, pois a política não é uma questão técnica (eficácia administrativa e militar) nem científica (conhecimentos especializados sobre administração e guerra), mas ação coletiva, isto é, decisão coletiva quanto aos interesses e direitos da própria polis.

A democracia ateniense, como se vê, era direta. A moderna, porém, é representativa. O direito à participação tornou-se, portanto, indireto, através da escolha de representantes. Ao contrário dos outros dois direitos, este último parece ter sofrido diminuição em lugar de ampliação. Essa aparência é falsa e verdadeira.

Falsa, porque a democracia moderna foi instituída na luta contra o Antigo Regime e, portanto, em relação a esse último, ampliou a participação dos cidadãos no poder, ainda que sob a forma da representação.

Verdadeira, porque, como vimos, a república liberal tendeu a limitar os direitos políticos aos proprietários privados dos meios de produção e aos profissionais liberais da classe média, aos homens adultos “independentes”. Todavia, as lutas socialistas e populares forçaram a ampliação dos direitos políticos com a criação do sufrágio universal (todos são cidadãos eleitores: homens, mulheres, jovens, negros, analfabetos, trabalhadores, índios) e a garantia da elegibilidade de qualquer um que, não estando sob suspeita de crime, se apresente a um cargo eletivo.

Vemos aqui, portanto, o mesmo que nos direitos anteriores: lutas sociais que transformam a simples declaração de um direito em direito real, ou seja, vemos aqui a criação de um direito.

As lutas por igualdade e liberdade ampliaram os direitos políticos (civis) e, a partir destes, criaram os direitos sociais – trabalho, moradia, saúde, transporte, educação, lazer, cultura -, os direitos das chamadas “minorias”[i] – mulheres, idosos, negros, homossexuais, crianças, índios – e o direito à segurança planetária – as lutas ecológicas e contra as armas nucleares.

As lutas populares por participação política ampliaram os direitos civis: direito de opor-se à tirania, à censura, à tortura, direito de fiscalizar o Estado por meio de organizações da sociedade (associações, sindicatos, partidos políticos); direito à informação pela publicidade das decisões estatais.

A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Com isso, dois traços distinguem a democracia de todas as outras formas sociais e políticas:

1. a democracia é a única sociedade e o único regime político que considera o conflito legítimo. Não só trabalha politicamente os conflitos de necessidade e de interesses (disputas entre os partidos políticos e eleições de governantes pertencentes a partidos opostos), mas procura instituí-los como direitos e, como tais, exige que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrática, indivíduos e grupos organizam-se em associações, movimentos sociais e populares, classes se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social que, direta ou indiretamente, limita o poder do Estado;

2. a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria praxis.

Os obstáculos à democracia

Liberdade, igualdade e participação conduziriam à célebre formulação da política democrática como “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Entretanto, o povo da sociedade democrática está dividido em classes sociais – sejam os ricos e os pobres (Aristóteles), os grandes e o povo (Maquiavel), as classes sociais antagônicas (Marx).

É verdade que a sociedade democrática é aquela que não esconde suas divisões, mas procura trabalhá-las pelas instituições e pelas leis. Todavia, no capitalismo, são imensos os obstáculos à democracia, pois o conflito dos interesses é posto pela exploração de uma classe social por outra, mesmo que a ideologia afirme que todos são livres e iguais.

É verdade que as lutas populares nos países de capitalismo avançado ampliaram os direitos e que a exploração dos trabalhadores diminuiu muito, sobretudo com o Estado do Bem-Estar Social. No entanto, houve um preço a pagar: a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as costas dos trabalhadores nos países do Terceiro Mundo.

Houve uma divisão internacional do trabalho e da exploração que, ao melhorar a igualdade e a liberdade dos trabalhadores de uma parte do mundo, agravou as condições de vida e de trabalho da outra parte. E não foi por acaso que, enquanto nos países capitalistas avançados cresciam o Estado de Bem-Estar e a democracia social, no Terceiro Mundo eram implantadas ditaduras e regimes autoritários, com os quais os capitalistas desses países se aliavam aos das grandes potências econômicas.

A situação do direito de igualdade e de liberdade é também muito frágil nos dias atuais, porque o modo de produção capitalista passa por uma mudança profunda para resolver a recessão mundial. Essa mudança, conhecida com o nome de neoliberalismo, implicou o abandono da política do Estado do Bem-Estar Social (políticas de garantia dos direitos sociais) e o retorno à idéia liberal de autocontrole da economia pelo mercado capitalista, afastando, portanto, a interferência do Estado no planejamento econômico.

O abandono das políticas sociais chama-se privatização, e o do planejamento econômico, resregulação. Ambas significam: o capital é racional e pode, por si mesmo, resolver os problemas econômicos e sociais. Além disso, o desenvolvimento espantoso das novas tecnologias eletrônicas trouxe a velocidade da comunicação e da informação e a automação da produção e distribuição dos produtos.

Essa mudança nas forças produtivas (pois a tecnologia alterou o processo social do trabalho) vem causando o desemprego em massa nos países de capitalismo avançado, movimentos racistas contra imigrantes e migrantes, exclusão social, política e cultural de grandes massas da população. Esse fenômeno começa também a atingir alguns países do Terceiro Mundo, como o Brasil.

Em outras palavras, os direitos econômicos e sociais conquistados pelas lutas populares estão em perigo porque o capitalismo está passando por uma mudança profunda. De fato, tradicionalmente, o capital se acumulava, se ampliava e se reproduzia pela absorção crescente de pessoas no mercado de mão-de-obra (ou mercado de trabalho) e no mercado de consumo dos produtos. Hoje, porém, com a presença da tecnologia de ponta como força produtiva, o capital pode acumular-se e reproduzir-se excluindo cada vez mais as pessoas do mercado de trabalho e de consumo. Não precisa mais de grandes massas trabalhadoras e consumidoras, pode ampliar-se graças ao desemprego em massa e não precisa preocupar-se em garantir direitos econômicos e sociais aos trabalhadores porque não necessita de seus trabalhos e serviços. Por isso o Estado do Bem-Estar Social tende a ser suprimido pelo Estado neoliberal, defensor da privatização das políticas sociais (educação, saúde, transporte, moradia, alimentação).

O direito à participação política também encontra obstáculos. De fato, no capitalismo da segunda metade do século XX, a organização industrial do trabalho foi feita a partir de uma divisão social nova: a separação entre dirigentes e executantes. Os primeiros são os que recebem a educação científica e tecnológica, são considerados portadores de saberes que os tornam competentes e por isso com poder de mando. Os executantes são aqueles que não possuem conhecimentos tecnológicos e científicos, mas sabem apenas executar tarefas, sem conhecer as razões e as finalidades de sua ação. São por isso considerados incompetentes e destinados a obedecer.

Essa forma de organização da divisão social do trabalho propagou-se para a sociedade inteira. No comércio, na agricultura, nas escolas, nos hospitais, nas universidades, nos serviços públicos, nas artes, todos estão separados entre “competentes” que sabem e “incompetentes” que executam. Em outras palavras, a posse de certos conhecimentos específicos tornou-se um poder para mandar e decidir.

Essa divisão social converteu-se numa ideologia: a ideologia da competência técnico-científica, isto é, na idéia de que quem possui conhecimentos está naturalmente dotado de poder de mando e direção. Essa ideologia, fortalecida pelos meios de comunicação de massa que a estimula diariamente, invadiu a política: esta passou a ser considerada uma atividade reservada para administradores políticos competentes e não uma ação coletiva de todos os cidadãos.

Não só o direito à representação política (ser representante) diminui porque se restringe aos competentes, como ainda a ideologia da competência oculta e dissimula o fato de que, para ser “competente”, é preciso ter recursos econômicos para estudar e adquirir conhecimentos. Em outras palavras, os “competentes” pertencem à classe economicamente dominante, que, assim, dirige a política segundo seus interesses e não de acordo com a universalidade dos direitos.

Um outro obstáculo ao direito à participação política é posto pelos meios de comunicação de massa. Só podemos participar de discussões e decisões políticas se possuirmos informações corretas sobre aquilo que vamos discutir e decidir. Ora, como já vimos, os meios de comunicação de massa não informam, desinformam. Ou melhor, transmitem as informações de acordo com os interesses de seus proprietários e das alianças econômicas e políticas destes com grupos detentores de poder econômico e político. Assim, por não haver respeito ao direito de informação, não há como respeitar o direito à verdadeira participação política.

Os obstáculos à democracia não inviabilizam a sociedade democrática. Pelo contrário. Somente nela somos capazes de perceber tais obstáculos e lutar contra eles.

Dificuldades para a democracia no Brasil

Periodicamente os brasileiros afirmam que vivemos numa democracia, depois de concluída uma fase de autoritarismo. Por democracia entendem a existência de eleições, de partidos políticos e da divisão republicana dos três poderes, além da liberdade de pensamento e de expressão. Por autoritarismo, entendem um regime de governo em que o Estado é ocupado através de um golpe (em geral militar ou com apoio militar), não há eleições nem partidos políticos, o poder executivo domina o legislativo e o judiciário, há censura do pensamento e da expressão (por vezes com tortura e morte) dos inimigos políticos. Em suma, democracia e autoritarismo são vistos como algo que se realiza na esfera do Estado e este é identificado com o modo de governo.

Essa visão é cega para algo profundo na sociedade brasileira: o autoritarismo social. Nossa sociedade é autoritária porque é hierárquica, pois divide as pessoas, em qualquer circunstância, em inferiores, que devem obedecer, e superiores, que devem mandar. Não há percepção nem prática da igualdade como um direito. Nossa sociedade também é autoritária porque é violenta (nos termos em que, no estudo da ética, definimos a violência): nela vigoram racismo, machismo, discriminação religiosa e de classe social, desigualdades econômicas das maiores do mundo, exclusões culturais e políticas. Não há percepção nem prática do direito à liberdade.

O autoritarismo social e as desigualdades econômicas fazem com que a sociedade brasileira esteja polarizada entre as carências das camadas populares e os interesses das classes abastadas e dominantes, sem conseguir ultrapassar carências e interesses e alcançar a esfera dos direitos. Os interesses, porque não se transformam em direitos, tornam-se privilégios de alguns, de sorte que a polarização social se efetua entre os despossuídos (os carentes) e os privilegiados. Estes, porque são portadores dos conhecimentos técnicos e científicos, são os “competentes”, cabendo-lhes a direção da sociedade.

Como vimos, uma carência é sempre específica, sem conseguir generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito. Um privilégio, por definição, é sempre particular, não podendo generalizar-se num interesse comum nem universalizar-se num direito, pois, se tal ocorresse, deixaria de ser privilégio. Ora, a democracia é criação e garantia de direitos. Nossa sociedade, polarizada entre a carência e o privilégio, não consegue ser democrática, pois não encontra meios para isso.

Esse conjunto de determinações sociais manifesta-se na esfera política. Em lugar de democracia, temos instituições vindas dela, mas operando de modo autoritário.

Assim, por exemplo, os partidos políticos costumam ser de três tipos: os clientelistas, que mantêm relações de favor com seus eleitores, os vanguardistas, que substituem seus eleitores pela vontade dos dirigentes partidários, e os populistas, que tratam seus eleitores como um pai de família (o despotes) trata seus filhos menores. Favor, substituição e paternalismo evidenciam que a prática da participação política, através de representantes, não consegue se realizar no Brasil. Os representantes, em lugar de cumprir o mandato que lhes foi dado pelos representados, surgem como chefes, mandantes, detentores de favores e poderes, submetendo os representados, transformando-os em clientes que recebem favores dos mandantes.

A “indústria política” – isto é, a criação da imagem dos políticos pelos meios de comunicação de massa para a venda do político aos eleitores-consumidores -, aliada à estrutura social do país, alimenta um imaginário político autoritário. As lideranças políticas são sempre imaginadas como chefes salvadores da nação, verdadeiros messias escolhidos por Deus e referendados pelo voto dos eleitores. Na verdade, não somos realmente eleitores (os que escolhem), mas meros votantes (os que dão o voto para alguém).

A imagem populista e messiânica dos governantes indica que a concepção teocrática do poder não desapareceu: ainda se acredita no governante como enviado das divindades (o número de políticos ligados a astrólogos e videntes fala por si mesmo) e que sua vontade tem força de lei.

As leis, porque exprimem ou os privilégios dos poderosos ou a vontade pessoal dos governantes, não são vistas como expressão de direitos nem de vontades e decisões públicas coletivas. O poder judiciário aparece como misterioso, envolto num saber incompreensível e numa autoridade quase mística. Por isso mesmo, aceita-se que a legalidade seja, por um lado, incompreensível, e, por outro, ineficiente (a impunidade não reina livre e solta?) e que a única relação possível com ela seja a da transgressão (o famoso “jeitinho”).

Como se observa, a democracia, no Brasil, ainda está por ser inventada.



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[i] Parece estranho falar em “minoria” para referir-se a mulheres, negros, idosos, crianças, pois quantitativamente formam a maioria. É que a palavra minoria não é usada em sentido quantitativo, mas qualitativo. Quando o pensamento político liberal definiu os que teriam direito à cidadania, usou como critério a idéia de maioridade racional: seriam cidadãos aqueles que houvessem alcançado o pleno uso da razão. Alcançaram o pleno uso da razão ou a maioridade racional os que são independentes, isto é, não dependem de outros para viver. São independentes os proprietários privados dos meios de produção e os profissionais liberais. São dependentes e, portanto, em estado de minoridade racional: as mulheres, as crianças, os adolescentes, os trabalhadores e os “selvagens primitivos” (africanos e índios). Formam a minoria. Como há outros grupos cujos direitos não são reconhecidos (por exemplo, os homossexuais), fala-se em “minorias”. A “maioridade” liberal refere-se, pois, ao homem adulto branco proprietário ou profissional liberal.